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Nicolai Dragos começou sua carreira aos 18 anos, aprendendo com os dois maiores pintores romenos de seu tempo – o pós-impressionista Rudolf Schwitzer-Cumpana e o expressionista Cornelius Baba. E, então, em 1952, numa viagem de dois meses a Bruxelas, entra em contato com as obras, as ideias e alguns expoentes do CoBrA, grupo de vanguarda que pouco antes fizera sua última exposição em Liège, antes de se dissolver.

Mais do que uma tendência, um ismo, ou um estilo, CoBrA foi, para Dragos, uma “experiência brutal” – revelou uma oportunidade até então insuspeitada de romper todas as amarras, de liberdade total na busca de uma pintura selvagem, sem regras, sem lei. A ênfase na experimentação, na intuição, na espontaneidade e na afirmação da singularidade lhe sugeria que tudo se tornara possível. Os artistas modernos já haviam estendido o campo da pintura para as chamadas criações “incivilizadas”: Cézanne introduzindo o colorismo, a prevalência da cor sobre a forma;  Klee e Mirò explorando a força dos desenhos infantis, e Picasso, a potência das máscaras primitivas; Kandinsky ondulando o espaço pictórico com os planos despencando uns sobre os outros; Dubuffet voltando-se para a arte dos loucos, art brut; Bram van Velde criando sua arte informal, essa pintura que, diz Samuel Beckett, “busca o rosto daquilo que não tem rosto”.

Dragos percebeu claramente que tudo se tornara possível. Mas tudo não quer dizer qualquer coisa. Como apontava van Velde, “criar uma pintura é assegurar que todas as suas partes realizam a unidade”. Em suma: caíram as barreiras dos cânones; mas o que restara era o mais difícil de alcançar – aquele não sei quê singular e intenso que faz a pintura emergir: caso contrário, só lhe resta soçobrar. Dragos decidiu correr o risco, apostar. Uma vez… e sempre, a cada vez.

Em todas as suas obras, ao longo de décadas, o que se coloca não é o que pintar, mas como. O objeto da pintura não é exterior a ela, é sua imanência. A pintura exige que se pinte o ato criador, isto é o engendramento da sua matriz. É isto que está em questão, invariavelmente, incessantemente, em todas as telas. Mas: atenção! A repetição do ato de pintar não resulta em padronização, em monotonia, em indiferença. A repetição é repetição de diferença, do engendramento em variação contínua e constante, sempre renovada. Não foi à toa que, em março de 2012, Dragos comentou seu trabalho nos seguintes termos: “A evolução seguiu minha própria estrutura artística, que encarei de maneira pessoal. O conceito epigenético de evolução do amorfo e não-definido para o estruturado e particular foi o meu caminho criativo, e tem se mantido até agora.” 

Ora, importa sublinhar que, para Dragos, o conceito epigenético de evolução se aplica tanto para a tomada de forma da pintura quanto para a formação do embrião na biologia. Em ambos os casos, o foco é, portanto, no caráter embrionário da criação; o foco é no germe, ou melhor, na germinação. Vale lembrar que é aqui que se encontram as duas vidas que Dragos mantém paralelamente: a vida de artista e a vida de médico. Dragos quer tornar visível, na pintura, o que não pode ser visto – o seu germe, o equivalente do embrião que toma forma na epigênese. Em outras palavras: Dragos-artista quer mostrar, em ato, a potência da germinação, enquanto Dragos-cientista se interessa pela embriologia na geração do organismo vivo. Nesse sentido, afirma, em maio de 1987: “O artista descobre as cores e as formas da mesma maneira que o cientista descobre as leis e as ciências da natureza.”

A pintura embrionária consiste, portanto, na pintura da passagem do amorfo e não-definido para o estruturado e particular. E nada além disso. Para que ela aconteça é preciso descartar, em termos puramente operatórios, uma série de ideias, de conceitos e de procedimentos habitualmente estabelecidos. Os primeiros deles se referem, é claro, às noções clássicas de composição e de representação. Mas com eles também precisam ser relegadas a primazia da forma, a primazia do olho, e a primazia do espaço, em benefício da força, da mão e do tempo da germinação. Vai ser preciso até mesmo esquecer a figuração, em prol da emergência do que J.-F. Lyotard designou como figural, isto é uma figura não-figurativa.

Assim, muda evidentemente o modo de pintar. A pintura embrionária exige que se passe do cavalete para o chão. As implicações dessa passagem são obviamente, muito importantes. Comentando o expressionismo abstrato de Jackson Pollock, corporificado na Action Painting, o filósofo Gilles Deleuze observa: “O que significa a tela solta no chão em vez da tela no cavalete? Significa uma conversão fundamental: converter o horizonte em chão. Significa passar do horizonte ótico para um chão do pé. Com efeito, a linha manual [e nào a linha ótica] é efetivamente expressa por essa espécie de conversão do horizonte em chão. O horizonte é fundamentalmente ótico. O chão é fundamentalmente tátil.” (p. 146)

A tela, então, deixa de ser uma janela, torna-se o espaço/tempo de um embate e de um enlace, de um corpo-a-corpo entre o artista e a matéria da pintura, num campo de ação. O pintor precisa enfrentar o amorfo e não-definido, vale dizer o caos primordial e, através de sua intervenção, dele conseguir fazer emergir o germe cuja potência vai presidir à tomada de forma. O pintor vai precisar agir na tela, e com ela, para que, nessa relação de potência com potência, nessa sintonia entre potências de natureza diversa, se dê a fecundação. Do caos ao germe – o que fica na tela é ao mesmo tempo o rastro da passagem e o momento da sua cristalização. Por isso mesmo, de um fundo caótico, indeterminado, nas telas de Dragos surge sempre um figural que nunca se consuma numa figura acabada, desponta um esboço incompleto de figura, ainda não destacado do fundo, ainda correndo o risco de ser por ele engolido, e, no entanto, já se afirmando como pura presença.

Há dois aspectos da ação pictórica de Dragos que precisam ser discriminados. O primeiro deles é o modo como o artista interfere no caos da tela através da marcação de um arcabouço dinâmico que vai orientar o sentido, a direção da ação. Não se trata de linhas, de desenho, mas sim de traços sem contorno – estes balizam uma ordem que, paradoxalmente, é uma ordem do caos, ordem interna a ele, ordem em potencial, virtual, que o faz ser percebido ao mesmo tempo como caos e campo fértil para a experiência da germinação, para a produção do figural. Com efeito, são os traços do arcabouço que imprimem um ritmo intenso e um movimento extenso percorrendo a tela, e conferindo a ela as dimensões da experiência. O segundo aspecto é o papel do colorismo, isto é o modo como a cor e as cores vão semeando o chão da tela e brotando nela, segundo o princípio de uma modulação, isto é, de uma exigência interna, de uma expansão que leva a cor até o limite de sua própria força de germinação, quando cede para a atuação de outra cor.

Segundo G. Deleuze, ser colorista, mas colorista arbitrário. “Quer dizer: ter conquistado o espaço onde as relações entre as cores não são mais limitadas pelo contraste nem pela proximidade. Isso cria distâncias, espaços infinitos de cor. E então você pode suprimir tudo, a figuração, o motivo, o que você quiser, vai ficar apenas com seus dois elementos da cor moderna, a saber a cor-estrutura e a cor-peso, o que poderíamos chamar de cor-força. (…) o jogo das cores-força e das cores-estrutura vai definir esse espaço colorista e formar a nova modulação.” (p. 343)

Finalmente, uma última palavra sobre os títulos dos quadros. Dragos lhes atribui títulos enigmáticos: O tempo de botar ovos; Cobras nos escombros; ficar ou sumir, esta é a pergunta; E a vida começa a renascer; Procurando mitos… Talvez sejam um pretexto, talvez sejam um impulso pré-pictórico indicativo da vontade de pintar. Mas é inútil tentar procurar a sua explicitação na tela. Os títulos só fazem adensar o mistério da emergência do embrião.

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