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Dizer é momento de produção de afirmação, que surge no bojo de um movimento. Movimento de expulsão, de esconjuro, de exorcismo das forças da morte que se apropriam da energia vital, voltando-a contra ela mesma.

Dizer é um momento da luta feroz e surda a que se entregam as forças da morte contra o sopro de vida. Dizer já e um início de vitória – mas não se diz o começo da luta, este é indizível. Quando se chega a dizer, é porque a barragem que represava o sopro já sofreu o primeiro abalo. Como se tivesse ocorrido uma imensa e mínima reviravolta, como se, de repente, ______________ .

Dizer é momento. Momento em que se quer o que se pode, e já se pode o que se quer. Momento que se diz para se poder e se querer mais, mais ainda, muito mais. Momento de gozo. No meio do combate terrível, que nos ensanguenta imperceptivelmente desde sempre, dizer é sinal de que o sopro de vida lateja mais forte, quer e pode existir sem buscar se aniquilar. Sinal de que des-solidarizou-se das forças da morte. Dizer é sinal e também prolongamento da des-solidariedade, e assunção da solidão, e rejeição para o lado de lá do que estava ali dentro, e dissociação do que parecia uno e indivisível, e descoberta da existência das forças inimigas, e declaração de guerra aberta à morte em vida. Dizer e o grito daquilo que se descobre forte e deseja, dizendo, consolidar e ampliar a reviravolta que se deu no combate.

Dizer é difícil, extremamente difícil. Séculos e séculos de servidão formaram, transformaram, refinaram as forças da morte em vida. Em toda parte, em todas as instâncias, elas se impõem como carne a envolver o osso da existência. Morte e vida, morte em vida, carne e osso. São elas que fazem da vida um osso duro de ser roído. Vida corroída.

Enquanto imperam as forças da morte, não é possível dizer. O que não significa mudez – ao contrário. Vorazes, exigindo fidelidade e reconhecimento, as forças da morte acionam a linguagem da sedução – que brota da boca aos borbotões e entope os ouvidos, que instaura a surdez generalizada e vai esterilizando o mundo, negando até o próprio órgão que permite articulá-lo. Ou, então, tal a imensa voz de que fala Michaux, as forças da morte sussurram ininterruptamente; incansáveis, revezam-se no tormento do monólogo interior. Impossível o silêncio. A voz preenche todos os espaços, enrijece e esfria todos os membros, impregna-se nas entranhas, deposita-se no fundo dos olhos, paralisando-os. Voz da consciência? Voz da má consciência, como diz Nietzsche? Sem dúvida: voz que repete o acontecimento – a incompatibilização entre espírito e corpo, a operação que leva o corpo a se autodestruir por intermédio do espírito.

Impossível o silêncio. E, nessa impossibilidade, a supremacia das forças da morte, o seu agir contínuo sobre o sopro de vida. Reduzindo-o ate a expiração (a expiação?). Impossível, o dizer, porque impossível, o silêncio. Pois dizer não é romper o silêncio. Dizer é falar o silêncio que é a vida. Já se escreveu que a vida não fala, mas sim escuta e espera. Escuta e espera a sua vez, não a sua voz.

Dizer é ajudar o silêncio a tornar-se mais espesso. O silêncio do espírito no corpo, agora começando a se reconciliar, selando a comunhão. Tudo se passa como se a imensa voz da linguagem, das forças da morte, perdesse subitamente o élan, a respiração. Esta passa a seguir e a sustentar outros ritmos, outros movimentos, outras intensidades, rebeldes à voz morta. Tremor, dor, horror, esplendor, pavor, amor. No fundo do labirinto.

Mas, a bem dizer, precisamente, não é agora que se chega ao fundo do labirinto, que se penetra no último quarto. A guerra dos órgãos não é a queda no buraco negro, não é a danação . A guerra dos órgãos, ao contrário, é o fio se esboçando, tênue, ainda esgarçado. Fio de Ariadne. A guerra dos órgãos é convalescença, possibilidade de recuperação. Nenhuma semelhança com os ataques epileptiformes do histérico, esse prisioneiro que, em vão, se faz de morto para tentar escapar de um poder superior que o domina.[1] A guerra dos órgãos é início de superação do medo. Medo do desmoronamento que já se deu, mas não foi experienciado. Fear of breakdown. Winnicott.[2]

 “Utilizei o termo breakdown intencionalmente porque ele é mais para o vago e pode ter significações diversas. Tudo bem pesado, pode-se, neste contexto, tomar essa palavra como significando o esvaecimento de uma organização defensiva. Mas, imediatamente, coloca-se uma questão: uma defesa contra o quê? E isso nos conduz a significação mais profunda do termo, pois precisamos utilizar a palavra breakdown para descrever o estado de coisas impensável que sustém a organização defensiva. A esse respeito, observar-se-á que é legítimo pensar que, no campo da psiconeurose, é a angústia de castração que se encontra atrás das defesas. Em contrapartida, nos fenômenos mais psicóticos que estamos examinando, trata-se de um desmoronamento da edificação do self unitário. O ego organiza defesas contra o desmoronamento de sua própria organização, é a organização do ego que esta ameaçada. Mas o ego não pode se organizar contra a falência do meio ambiente, na medida em que a dependência e um fato da existência.”

[1] Ci. Elias Canetti, Masse et puissance. Paris, Gallimard, 1966, pp. 362 SS.

[2] D. W. Winnicott, “La crainte de l’effondrement”, Figures du vide – Nouvelle revue de psychanalyse nº 11. Paris, Gallimard, primavera de 1975, pp. 35·44.

Desmoronamento, breakdown: agonias primitivas. Medo do desmoronamento: organização de defesas contra as agonias primitivas. Psicose. Em estilo telegráfico, Winnicott enumera algumas das agonias primitivas e suas defesas correspondentes:

“1) A volta a um estado não integrado (defesa: a desintegração).

“2) O não parar de cair (defesa: a auto-sustentação [self-holding]).

“3) A perda da colusão psicossomática, falência da residência no corpo (defesa: a despersonalização).

“4) A perda do sentido do real (defesa: a exploração do narcisismo primário etc.).

“5) A perda da capacidade de estabelecer uma relação com os objetos (defesa: os estados autísticos, o estabelecimento de relações apenas com fenômenos saídos de si).”

Positividade dos afetos psicóticos enquanto defesa contra o desmoronamento. Filhos do medo de agonias já havidas, já sofridas, mas não experienciadas e por isso mesmo ilocalizáveis, imemoriais – filhos do medo da “morte fenomenal”.

“Segundo minha experiência”, escreve Winnicott, “há momentos em que um paciente precisa que lhe digam que o desmoronamento, cujo medo mina sua vida, já ocorreu. É um fato que ele porta escondido no inconsciente. O inconsciente de que se trata aqui não e exatamente o inconsciente recalcado da psiconeurose; também não é o inconsciente da formulação freudiana, essa parte da psyché bastante próxima do funcionamento neurofisiológico. Também não é o inconsciente de Jung, que definirei assim: todas as coisas que se passam nas grutas subterrâneas ou (em outros termos) a mitoIogia do universo em que há colusão entre o indivíduo e as realidades psíquicas maternais interiores. No contexto particular de que falo, o inconsciente significa que a integração do ego não está em condições de englobar alguma coisa. O ego é imaturo demais para reunir todos os fenômenos no campo da onipotência pessoal.”

Por que então permanece o tormento da agonia primitiva, atualizado pelo medo, pelas defesas, pela psicose? Por que a presença de um tormento que pertence ao passado? – pergunta-se Winnicott. “A resposta deve ser que a experiência original da agonia primitiva só pode ser colocada no passado se o ego pode primeiro fazê-la entrar em sua própria experiência do tempo presente e no domínio onipotente atual…”

Inversão de perspectivas: a psicose não é desmoronamento mas pode vir a ser a via de acesso a ele. Para que a agonia seja experienciada, vivenciada, aqui e agora. Um ínfimo deslocamento talvez possa começar a livrá-la da tutela do medo – deslocamento que muda tudo. Despregando-se do medo, a desintegração, o self-holding, a despersonalização, a exploração do narcisismo primário, o autismo podem abrir as portas à agonia. Tremor, dor, horror, esplendor, pavor, amor. Guerra dos órgãos.

Com sua implacável pressão, o medo travava a existência sem suprimir a agonia. Reduzindo o medo, neutralizando-o, a existência vivencia a “morte fenomenal”, o acontecimento. Ou melhor: só agora o acontecimento (perda da colusão psicossomática, divórcio entre espírito e corpo) pode ser experienciado, pode acontecer. Marco zero da busca da não-existência pessoal a que levou a despersonalização, depois que o medo Ihe foi subtraído.

Ilusão já ter acreditado que as forças da morte constituem a “morte fenomenal”. Ilusão ter tido medo do desmoronamento necessário, incontornável. Lá era a morada do sopro de vida que não pode ventar. Ter acreditado… Crença. Fé. Quem faz acreditar, quem faz ate mesmo o instinto acreditar, senão as forças da morte que tramam, estimulam, atiçam o medo da “morte fenomenal”? Quem quer evitar o sofrimento? Ah, Nietzsche! Grandeza de Nietzsche, força descomunal que, dentro de suas sete solidões, se perde e se acha no labirinto, que nomeia, analisa, disseca, vocifera contra a voz imensa, voz insistente do medo a abafar, a sufocar o silêncio da agonia, enquanto explora e se nutre do sopro de vida que ela encerra. Quem quer evitar a qualquer preço a chegada ao marco zero da não-existência, quem persegue o trabalho destrutivo, senão as forças da morte? E, no entanto, afirma Winnicott, “pode-se dizer que só da não-existência é que a existência pode começar” . [3]

  [3] O grifo é meu.

* * *

Deslocamento mínimo – reviravolta. Experiência de agonia. Na guerra dos órgãos, os rebeldes passaram à ofensiva. Indecência fulgurante, misto de prazer e horror. Assombro diante da descoberta: os órgãos podem, os órgãos sabem. Sabem com que violência os aguilhões da morte os assaltam, os mantêm como reféns, sabem com que tenacidade parasitam o desabrochar das suas possibilidades. Sempre souberam. Sentiam, por exemplo, que a irrigação de suas extremidades se rarefazia cada vez mais – esfriavam, insensibilizavam-se, adormeciam. Às vezes uma dor nos braços, ou o entumescimento das gengivas, os maxilares tensos, o asco provocado pelo contacto dos dedos das mãos com os dos pés, a impossibilidade ate de se pensar na existência do umbigo sem que um movimento de repúdio arremessasse o corpo para longe, ou ainda um leve frisson da pálpebra esquerda que acometia inopinadamente no meio da estrada – tentavam alertar. Em vão. A voz imensa se impunha, sempre: obrigava a decifrá-los como fatalidades menores da existência, como manifestações que deviam ser desprezadas, reduzidas à sua insignificância. Até mesmo sinais duradouros, como os ombros sempre levantados, como· as unhas roídas, os dedos sempre escalavrados, a voz ditava que deveriam ser acolhidos com resignação. A voz não deixava perceber que a autofagia resultava de um movimento de dupla destruição: destruição da boca que se compraz no desamor aos dedos, que amarga com satisfação as lascas de pele; destruição dos dedos, culpados, tremendamente culpados de ainda pretenderem à beleza do gesto – de ainda terem a veleidade do exercício da ação. Até mesmo sinais duradouros… como a secura dos olhos que há anos desaprenderam o pranto, que não podem mais acolher a dádiva das lágrimas. Todo o esforço, todo o empenho não seriam suficientes para romper as comportas que obstruem as vias lacrimais. Conjuntivite crônica. Olhos ensanguentados.

Os órgãos sabem. Sabem que estão na defensiva. Sabem também que, vencido o medo, vão destilando as forças da morte, desfazendo-se delas. A experiência da agonia desdobra-se em exercício. E o que se passa não e exatamente o desaparecimento do objeto e do espaço da experiência em proveito do exercício do deslocamento rápido, como observa Paul Virilio [4] a respeito da velocidade, não é a perda do “tato das coisas e das matérias, transformadas em igual número de signos e de instruções”. Ao contrário. O exercício é atividade, uso, é o exercitar, o praticar a experiência da agonia; é a recuperação do tato das coisas e das matérias, é o contacto renovado e ampliado com a realidade primeira da vida, a realidade do sopro. Falência dos signos e das instruções da voz imensa: o exercício é puro deploiement do sopro de vida, multiplicação do sopro provocando faíscas, acendendo clarões nos órgãos, entre os órgãos. Ah, até o dicionário mente quando pretende enunciar a experiência! Nele, todo tato, todo contacto, está subordinado ao espírito, ao inteligível, à observação, ao aprendizado – subordinado ao aprimoramento da supremacia do espírito sobre o corpo, este reduzido a mero instrumento escravo. Experiência: “conjunto das aquisições do espírito resultante do exercício de nossas faculdades (no contacto com a realidade, com a vida). Conhecimento, saber, ciência”.

[4] P. Virilio, Essai sur l’insecurite du territoire. Paris, Stock. 1976. p. 256.

Exercício dos pés no espaço da experiência. De início os pés, sempre vacilantes, tímidos, que jamais se firmaram, se afirmaram na terra, que andam pedindo desculpas, se enervam. Pés apoiados sempre na ponta, nunca nos calcanhares, como que a denunciar não a tentativa de se despregarem do chão, mas a impossibilidade de se assentarem para o impulso do salto. Pés incapazes, estropiados. De início, enervam-se. Vibrações minúsculas os percorrem, tornando insensível a sua insensibilidade. Feixes de milhares de agulhas picam a pele, de dentro para fora; os ligamentos acusam tensões várias, são diferentes arcos de tensões; subitamente, num repuxo que acumula e exacerba as intensidades, os pés descambam no ar, debatendo-se. O corpo imóvel, perplexo, sente que os pés ganharam autonomia, a voz imensa tenta reprimi-Ios, num átimo. Os pés aquietam por algum tempo, mas novas ondas submergem o imperativo da voz – ou, então, aproveitam os espaços por ela abandonados precipitadamente para acorrer a novos pontos de deflagração do outro lado do corpo, em outros órgãos. A repetição do processo – sempre inaugural porque sempre imprevisível, porque não há formigamento e sim formigamentos, sempre inéditos – transforma pouco a pouco a qualidade da experiência. Do mero descarregar as forças da morte, do exorcismo do horror, os pés, maravilhados, passam a exercer movimentos nunca feitos, a encontrar as suas flexões, a explorá-Ias. Deslumbramento e alegria selvagem dos pés – prazer que encontram em separar ao máximo os dedos, em dobrá-los, em esticá-los tremendo, em roçar os artelhos em seus vizinhos, em curvar ao máximo a planta, em esfregar no chão os calcanhares, em se encaixarem um no outro, em destrambelhar os tornozelos. A boca atende ao chamado dos pés, cobrindo-os de beijos, molhando-os com saliva grossa, mordiscando-os; as mãos aquiescem ao seu convite e vêm apalpar, emaranhar dedos, azeitar articulações, esquentar os pés, somando forças para que eles ampliem o campo de ação, de descobertas. Na experiência renovada, pés cujo exercício é um prolongado embora descontínuo nascer para o mundo.

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Dizer é um fragmento do exercício. Exercício da experiência da agonia. Não se trata de procurar exprimir, manifestar a “essência” dessa experiência, nem mesmo de procurar transcrever, num outro plano, a “morte fenomenal”. Dizer não é representá-la no palco da consciência. Dizer é fragmento.

Dizer “dor do mundo”, por exemplo, não é traduzir em linguagem a violenta e mínima convulsão que ganha os músculos do polegar esquerdo e aciona a pele que o liga no indicador. Brotando da garganta, o dizer “dor do mundo” também é tremor, palpitação da região afetada – uma entre muitas partículas beta. Obnubilada, a consciência busca reter e fixar o que foi dito, busca identificar a atividade em curso dando-lhe um sentido, eleger o dizer “dor do mundo” como porta-voz da experiência da agonia: “Então… é isso!” Mas, porque dizer e dicção, maneira de debitar, de fornecer uma corrente elétrica a um circuito, o espasmo prevalece, acelerado, exorbitado, … e as pedras dos olhos podem escorrer em lágrimas – grãos de areia que escorrem nas dunas do rosto. E, se enunciado em sons de fogo o dizer permanece, sua permanência é feita de transitoriedade bruxuleante – como um resíduo, como uma sobra: apenas a testemunhar a força do sopro de vida em atividade, em expansão.

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Dizer é dicção. Dicção cujo tempo é sempre presente, sempre dizendo. Encontrar a dicção e render-se aos ritmos, as diferentes respirações, a escansão da experiência da agonia. Receber com júbilo as variações, as modulações, os timbres… e exercê-los, na dicção. No capítulo “Por que escrevo livros tão bons”, Nietzsche escreve:

“Acrescentarei ainda uma palavra sobre minha arte do estilo em geral. Comunicar por signos – inclusive o tempo desses signos – um estado, ou tensão interna de uma paixão, tal é o sentido de todo estilo: e, se se considera que a diversidade dos estados interiores é em mim excepcional, há portanto em mim muitas possibilidades de estilos – a arte do estilista mais versátil que homem algum jamais dominou. Todo estilo é bom, se comunicar verdadeiramente um estado interior, se não se enganar quanto aos signos e quanto ao tempo desses signos, quanta aos gestos – todas as leis do período oratório remetem à arte do gesto”. [5]

[5] F. Nietzsche, Ecce homo. Trad. J.-Cl. Hémery. Paris, Gallimard, 1974. pp. 68-9 [Coll. Idées].

Dizer é dicção. Aos ouvidos de Nietzsche, é Maquiavel expondo as mais graves questões em ritmo de um allegrissimo galopante. Signos, tempo e gestos (desses signos): dizer. Será a isso que Francis Ponge [6] se refere quando aponta a necessidade de uma nova retórica, quando adverte que é preciso trabalhar a partir da descoberta de Rimbaud e Lautréamont, e não a partir da questão colocada pela primeira parte de suas obras?

[6] F. Ponge, “My creative method”, Methodes, NRF. Paris, Gallimard, 1961, p.43.

Dizer é dicção. E dicção é atividade fisiológica, afirmação de vida. Quem afirma, senão o corpo vivo? E com que voz? As forças da morte habituaram-nos a cumprir a sentença que ditavam: La voie du corps, c’est la voix:. Sentença que condenava o corpo a descarnar-se, a privilegiar o verbo, a espiritualizar-se progressivamente, a trilhar os caminhos da fé – a fé em Deus, na Ciência, na Razão – em busca da fusão com a voz imensa; sentença que depositava na voz as esperanças de uma impossível redenção, que levava a boca a acreditar na emissão da súplica; e, na repetição desta, a salvação. A experiência da agonia inverte o processo. La voix du corps, c’est la voie.

Dizer é dicção: tempo e gestos dos signos que, vivificados pelo sopro de vida, agora concorrem para o exercício do corpo, para o seu despertar. Transmutação da linguagem. Linguagem que age, linguagem que é ação do corpo, dos órgãos, dos sentidos – linguagem intensa, tensa, cujo ponto máximo nos é revelado por Elias Canetti [7] em sua análise dos pressentimentos dos bosquímanos, esses homens que sentem em certas partes do corpo a aproximação de alguém amado, que sentem na nuca a picada do inseto no pescoço do avestruz, que sentem no comichão dos pés o atrito das patas do antílope próximo, que sentem a lista negra e as manchas dos olhos do animal em seu próprio rosto, que sentem nas costas os pelos, e na cabeça os chifres, que sentem na cova dos joelhos o pingar do sangue do bicho que será caçado. “Eles sentem em seu corpo a iminência de certos acontecimentos”, escreve Canetti.

“Uma espécie de palpitação de sua carne lhes fala e os informa. Como dizem, as letras de seu alfabeto estão em seu corpo. Essas letras falam e mexem e determinam seus próprios movimentos. Um homem impõe silêncio aos outros e fica quieto quando sente palpitações em seu corpo. O pressentimento diz a verdade. Os tolos não compreendem a lição e caem em infortúnio, um leão os devora ou os atinge algum mal. As palpitações dizem àqueles que as compreendem os caminhos que devem evitar, as flechas que não devem utilizar. Elas os advertem quando muita gente se aproxima da casa sobre uma carroça. Quando se está a procura de alguém, as palpitações indicam em qual caminho é preciso procurá-lo para encontrá-lo.”

[7] E. Canetti, op. cit., pp. 357-62.

Linguagem dos bosquímanos, linguagem que ação do corpo. Início, esboço de metamorfose. Pressentimento que, acolhido, respeitado, abre as portas à identificação de um corpo com outro. Identificação singular: não se é o outro para se renunciar a si mesmo, não se abandona a própria pele para se entrar na pele do outro; o homem sente sua pele transformar-se em pele de antílope, mas ela continua sendo a sua própria. Canetti observa:

“O corpo de um só e mesmo bosquímano torna-se o corpo de seu pai, de sua mãe, de um avestruz, de um antílope. É de extrema importância que ele possa ser todos esses corpos, em momentos diferentes, para sempre tornar a ser ele próprio. As metamorfoses que se seguem alternam segundo as ocasiões. São metamorfoses nítidas: cada criatura da qual sente a aproximação permanece o que ela é. Ele as mantém separadas, senão elas não teriam sentido algum”.

O pai não é a mulher, o avestruz não é o antílope. “A identidade pessoal, à qual o bosquímano sabe renunciar, permanece afirmada na metamorfose. Ele pode ser isto ou aquilo, mas isto permanece distinto daquilo, pois no intervalo sempre torna a ser ele próprio. “

Linguagem do corpo. Linguagem do homem primitivo. La voix du corps, c’est la voie. Esboço, via da metamorfose. Potência inaudita do corpo que se exerce e pode, assim, dizer. Faculdade perdida, soterrada pela civilização da voz imensa, do Verbo que ordena e se assenhora do corpo, que o submete, o disciplina. Flechado pela ordem (que segundo Canetti é sempre uma ameaça de morte), o corpo se imobiliza; e porque não se exerce mais, emudece. Domesticado, servil, impossibilitado de dizer, agora obedece; em vez de exercer sua potência, o corpo passou a ser agido por uma potência exterior. Corpo-instrumento. Que, embora sujeitado, ainda guarda num sopro de vida força bastante para não aceitar sua nova condição, para não fazer seu o imperativo da ordem. E ao executá-la, mantém a ordem isolada, como um corpo estranho, um quisto que atormenta o homem – nas palavras de Canetti, um “aguilhão”, “núcleo duro da alma”. Não mais o corpo que age e, agindo, diz a linguagem dos sentidos; mas sim linguagem que age o corpo e, agindo, enuncia o primado da ordem, da voz imensa.

Perversão da linguagem? Monstruosa, a linguagem que ordena o massacre, aos gritos de “Evviva la morte!”? Na cultura ocidental outros, não muitos, sentindo-se interpelados, já se entregaram a essas interrogações. Poetas, escritores, loucos, etnólogos, alguns filósofos, que viveram a paixão de escrutar em sua própria carne as marcas invisíveis deixadas pela linguagem da voz imensa – e que cabe a cada um descobrir, a caminho da experiência da agonia.

A linguagem age o corpo. Não seria essa perversão da linguagem a descoberta de Mallarmé, quando, em plena representação teatral, tem a iluminação que o faz escrever: “Enunciar significa produzir”? O sentido de enunciar e produzir. Produzir o que, senão efeito sobre os corpos, nos corpos, senão a transformação do corpo em ator, agente transmissor da ordem, em corpo-trabalhador, corpo-instrumento de produção e de reprodução da ordem? Por que então a leitura de Mallarmé provoca um mal-estar epidérmico, essa sensação de rejeitar a pele, como que a indicar que tudo esta perdido, irremediavelmente? Dificuldade de dizer o mal-estar. Mas é preciso tentar, arriscar. O mal-estar não vem porque com o poeta se percebe que o enunciar é proclamação da dominação exercida pela voz imensa – dominação que se efetiva como negação do corpo. Mallarmé capta o movimento de subordinação do corpo; o processo que arrasta o poeta, parece que o leva até a fonte, a nascente da voz – uma instância vazia, injustificável, pura negatividade.E essa descoberta o deixa perplexo, o paralisa: como o poderio da voz pode formar-se na negação? Na arbitrariedade da negação, em seu caráter propriamente impossível, Mallarmé identifica uma ordem, a ordem derradeira, a ordem do acaso. Se a ordem do acaso e a ordem primeira, se ela e negação, o que pode ser a criação? Confirmação do caráter negativo do acaso, repetição da ordem? Mas isso não é a mesma coisa que negar o caráter afirmativo da criação? O impasse e absoluto – para criar seria necessário suprimir a ordem do acaso, e esta seria irredutível, seria a realidade primeira. Impotente, Mallarmé se aceita como prisioneiro da linguagem da voz imensa, ele, que ambicionava o absoluto: Jamais um coup de dés n’abolira le hasard.

A linguagem age o corpo, faz dele um instrumento de extensão do poder negativo da ordem, cria nele aguilhões dos quais só se Iibera quando a mesma ordem é repassada para frente, diz Canetti, vai flechar outro corpo. Mas nem sempre a ordem que se desfecha é a mesma que se recebeu e gerou o aguilhão ao ser executada; o quisto então não desaparece, embora permita a ampliação dos domínios da ordem. Circulação da ordem, circulação da linguagem – de boca em boca. Imobilização generalizada dos corpos, impedidos de dizer e de se exercer. Linguagem triunfante da ordem que fala da imobilização dos corpos, através de suas bocas.

* * *

As bocas fazem circular a linguagem triunfante da ordem. Como captar essa circulação? Dito de outro modo: como ouvi-la?

Ouvir não e sinônimo de passividade, – restringir-se a entender o que entra pelos buracos dos ouvidos, procurar identificar o significado do som. Na audição, importa tanto ou mais o como que o que se ouve. No como se dá ou não o contacto com o quê. Com o que soa. Se soa bem, se ouve, se aprecia. Apreciação que é encontro, comunhão do que vibra soando com o que vibra ouvindo. E, do encontro, resulta como sobra, como algo a mais, desnecessário do ponto de vista da economia da audição mas fruto dela; o sentido. Por isso ouvir implica abandono, silêncio interior, entrega, disponibilidade para o outro. Condições imprescindíveis, mas raras; pois não se ouve quando se é servo, sobretudo servo do narcisismo (o que é a mesma coisa).

Escutamos alguém dizer: La vita a noi sarà! O sentido da frase é evidente – compreendemos. Depois, ouvimos Maria Callas cantando-a em Lucia di Lammermoor, de Donizetti. A paixão. Ouvimos pelos pés ou a pele – superfícies agitadas pela soprano? ou é o corpo todo que desaparece, deixando espaço para os ouvidos, desmesuradamente ativos, vivos? Jamais a análise semântica poderá resgatar a fulgurância do encontro com o dizer La vita a noi sarà! de Maria Callas. Em sua voz a frase é desejo, e desespero, é loucura, é crime cometido e horror, é morte próxima, é promessa que já se sabe inalcançável. Flauta e orquestra empalidecem diante da tragédia. Quando Maria Callas canta já nem é mais uma obra-prima da música que se ouve. Outra é a dimensão. Imersos no prazer do encontro, do instante, assombrados, os ouvidos do corpo ou o corpo dos ouvidos sentem, pela voz e por eles, o trágico se dizendo. E a própria composição de Donizetti, a ópera inteira, Se esvanece – como que limitando-se a criar condições para que a paixão possa acontecer.

Ouvir Maria Callas cantando a frase. E, depois, terminada a audição, tentar recompor o acontecimento que torna essa voz inumana e metamorfoseia os ouvidos a ponto de nos comunicar: há o antes e o depois. Tentar recompor o acontecido; não para explicá-lo mas para aguçar os ouvidos e renovar o encontro. O que faz a diferença e distingue o canto de Callas dos outros? Talvez a resposta seja esta: em ninguém se encontraria tamanha afirmação do plano da expressão. De repente, é como se todas as outras cantoras cantassem a frase La vita a noi sarà! colocando a expressão a serviço de um conteúdo exterior, de um sentimento que a voz deve realçar e transmitir. Enquanto a Callas parece que esvazia o plano do conteúdo em detrimento do da expressão, parece que musicaliza o enunciado ao extremo, tornando audível a riqueza prodigiosa que comporta a sua substância da expressão; e é precisamente na intensidade com que a substância da expressão é pronunciada que as figuras do trágico se formam. O ouvinte, então, vive o processo de enunciação da frase e, por isso, dentro dela, depara-se com o seu sentido pleno. Maria Callas lhe permite vivê-lo ao entregar-se ela mesma ao processo. La vita a noi sarà está sendo forjada ali, no instante, pela primeira vez – frase única.

Dizer. Ouvir. Linguagem viva. Que provoca júbilo no poeta e que consiste em poder fazer gozar “esse sentido que se situa no fundo da garganta: a igual distância da boca (da língua) e das orelhas. E que e o sentido da formulação, do verbo”.[8] Nietzsche, o filólogo-poeta, sabe disso, sabe dizer e ouvir, apreender o processo: “O que é uma palavra? A figuração ao de um estímulo nervoso em sons”. “Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova. Pode-se pensar em um homem que seja totalmente surdo e nunca tenha tido uma sensação do som e da música: do mesmo modo que este, porventura, vê com espanto as figuras sonoras de Chladni desenhadas na areia, encontra suas causas na vibração das cordas e jurará agora que há de saber o que os homens denominam o ‘som’, assim também acontece a todos nós com a linguagem. Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no entanto não possuímos, nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem. Assim como o som convertido em figura na areia, assim se comporta o enigmático X da coisa em si, uma vez como estímulo nervoso, em seguida como imagem, enfim como som. Em todo o caso, portanto, não é logicamente que ocorre a gênese da linguagem, e o material inteiro, no qual e com o qual mais tarde o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuvens, em todo caso não da essência das coisas”.[9]

[8] F. Ponge, op. cit., p. 22.

[9] F. Nietzsche. “Verité et mensonge au sens extra-moral”. Écrits posthumes 1780-1873, NRF. Paris, Gallimard. 1975. pp. 280-1. “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”. Nietzsche. 2ª ed. São Paulo, Abril Cultural, 1978. pp. 47-8. [Os Pensadores]

Linguagem viva. Processo de formação do que Nietzsche chama “metáfora intuitiva”. Mas essa palavra única, fruto de uma vivência, será capturada pelo sistema da abstração que a vai reduzir, empobrecer, descolorir, transformar em conceito – esse “resíduo de uma metáfora” que iguala o não-igual. “Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha e formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo que fosse ‘folha’, uma espécie de folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma primordial.” [10]

[10] Idem, ibidem, p.281. Na trad. Brás. P. 48.

Do processo ao sistema. Da metáfora intuitiva ao conceito. Da vivência a abstração. Da diferença à uniformidade. Do singular à generalização. Entre os dois, o esquecimento do homem que vai amordaçar-Ihe o corpo, sujeitá-lo à forma primordial. La Boétie é realmente o precursor de Nietzsche, como queria Pierre Clastres. Poeta e filósofo, o autor do Discurso da servidão voluntária designava a passagem como o mau encontro que fez o homem perder a lembrança de seu primeiro ser; e se indagava sobre o encanto e o feitiço que exerce sobre o homem o nome de Um, essa essência abstrata originária da qual Nietzsche vai se desprender três séculos depois e cuja critica é um dos fundamentos de sua obra. É impressionante o paralelismo La Boétie-Nietzsche. No primeiro, a partir da perversão da linguagem, do feitiço do nome de Um, ergue-se a pirâmide da dominação social, política e religiosa, surge a figura do Tirano como fonte e confluência de tudo. No segundo, vê-se o homem sujeitando-se dentro da própria esfera da linguagem ao dobrar-se ao sistema regido pela abstração:

“Coloca agora seu agir como ser racional sob a regência das abstrações; não suporta mais ser arrastado pelas impressões súbitas, pelas intuições, universaliza antes todas essas impressões em conceitos mais descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu viver e agir. Tudo o que destaca o homem do animal depende dessa aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema, portanto de dissolver uma imagem em um conceito. Ou seja, no reino daqueles esquemas, é possível algo que nunca poderia ter êxito sob o efeito das primeiras impressões intuitivas: edificar uma ordenação piramidal por castas e graus, criar um novo mundo de leis, privilégios, subordinações, demarcações de limites, que ora se defronta ao outro mundo intuitivo das primeiras impressões como o mais sólido, o mais universal, o mais conhecido, o mais humano e, por isso, como o regulador e imperativo. Enquanto cada metáfora intuitiva é individual e sem igual e, por isso, sabe escapar a toda rubricação, o grande edifício dos conceitos ostenta a regularidade rígida de um columbário romano e respira na lógica aquele rigor e frieza, que são da própria matemática”.[11]

[11] Idem. ibidem, p. 281. Na trad. bras., p. 49.

Esquecer as metáforas intuitivas é aceitar a supremacia do sistema sobre o processo. É ser servo. Mas, para dela livrar-se, de nada adianta procurar lembrar, de nada vale querer contrapor a reminiscência ao esquecimento – a oposição não se sustenta pois ambos os polos estão no mesmo terreno, movidos pelo mesmo movimento. Não ha o que ser lembrado se se foi criado na perversão da linguagem. E em vez de procurar lembrar, agir; em vez de buscar o sonho, sonhar; em vez de perseguir um tempo em que as metáforas intuitivas fossem ou tivessem sido rainhas, tecer no presente, o presente , das metáforas intuitivas soterradas pela pirâmide. Tudo é uma questão da maneira como se pode ou não relacionar-se com a linguagem. Da maneira como se age com e na linguagem; como se ouve, se lê, se diz, se escreve. Mais fácil é aceitar a servidão, respeitar os cânones do sistema que se apropria do processo e toma as metáforas “gastas e sem força sensível” pelas coisas mesmas – distorção que fixa a “verdade” das coisas, matriz da ilusão. Ou, então, proceder de modo diverso, como Nietzsche: insuflar as forças do processo que, por baixo do todo-poderoso sistema, dormitavam na dicção, na entonação, no timbre, no tempo, no ritmo, na cor das palavras; valorizar o processo. Mudança radical de perspectiva: abandonar a pretensão do sistema de querer dizer as coisas em si para abandonar-se à afirmação de como nos relacionamos com elas. Mudança de perspectiva: o processo deixa de ser objeto de apropriação do sistema e passa a ser o agente que recorre, por um momento, ao sistema, não para nele fixar a sua criação, a sua metáfora intuitiva como a verdadeira, mas sim para poder se desenvolver, se aprimorar.

“Agora ele [o intelecto] afastou de si o estigma da servilidade: antes empenhado em atribulada ocupação de mostrar a um pobre indivíduo, cobiçoso de existência, o caminho e os instrumentos e, como um servo, roubando e saqueando para o seu senhor, ele agora se tornou senhor e pode limpar de seu rosto a expressão de indigência. [ … ] Aquele descomunal arcabouço e travejamento dos conceitos, ao qual o homem indigente se agarra, salvando-se assim ao longo da vida, é para o intelecto que se tornou livre somente um andaime e um joguete para seus mais audaciosos artifícios: e quando ele o desmantela, entrecruza, recompõe ironicamente, emparelhando o mais alheio e separando o mais próximo, ele revela que não precisa daquela tábua de salvação da indigência e que agora não é guiado por conceitos, mas por intuições. Dessas intuições nenhum caminho regular leva à terra dos esquemas fantasmagóricos, das abstrações: para elas não foi feita a palavra, o homem emudece quando as vê, ou fala puramente em metáforas proibidas e em arranjos inéditos de conceitos, para, pelo menos através da demolição e escarnecimento dos antigos limites conceituais, corresponder criadoramente à impressão de poderosa intuição presente”. [12]

[12] Idem, ibidem, p. 289. Na trad. bras., p. 51.

Nietzsche, o filólogo-poeta, sabe dizer e ouvir; e sabe dizer porque sabe ouvir. Antes do poeta, o filólogo. Ora, o que é ser filólogo para Nietzsche? É reencontrar o texto primitivo do homem sob o fasto verbal [13]  e, para reencontrá-lo, redescobrir que os órgãos desse homem, para além de sua utilidade, são um campo de forças cujo “sentido” se desloca; assim, o “sentido” do olho não limita-se ao ver, o “sentido” da mão não é só pegar.[14] Ser filólogo é exercer as possibilidades desses órgãos no contacto com os textos, com as línguas. Lendo, por exemplo, com os ouvidos.

[13] F. Nietzsche, Par-delà bien et mal, NRF. Paris, Gallimard, 1971, § 230, p.172.

[14] F. Nietzsche, La généalogie de la morale. Paris, Gallimard, 1982, § 12, 2ª dissertarção, p. 108 [Coll. Idées].

Ler com os ouvidos – essa é a grande arte de Nietzsche-filólogo. Com ouvidos gregos, ouvidos musicais. Ou, com o “terceiro ouvido”. Numerosas são as passagens em que Nietzsche fornece indicações sobre a sua maneira de ler.[15] E devemos atentar para as implicações do que diz a respeito de Zaratustra: “É preciso mais que tudo saber ouvir corretamente o tom que vem dessa boca, esse tom alciônico […]”.[16] Ou, ainda: “Talvez Zaratustra pertença todo ele à musica; em todo caso, é certo que pressupunha um verdadeiro renascimento da arte de ouvir”.[17] Devemos acatá-lo quando diz falar a língua do ditirambo, ou quando termina a Gaia ciência com as Canções do Príncipe Livrepássaro, do príncipe fora-da-lei. Pois Nietzsche exige ser lido como ele próprio lê: com os ouvidos – condição necessária para que os livros ensinem a dançar.

[15] Alguns exemplos: “O escritor mais livre”, em Opiniões e sentenças misturadas, § 113; “Aprender a escrever bem”, § 87, “Estilo escrito e estilo falado”, § 110, e “Para servir de desculpa aos estilistas pesados”, § 187, em O viajante e sua sombra; “ Arte e natureza”, em A gaia ciência, § 80; Para além do bem e do mal, § 28, 246 e 247; O Anticristo, § 59; “Porque sou tão esperto”, § 3, “Por que escrevo livros tão bons”, §§ 1 e 4, em Ecce homo; Humano, demasiado humano, § 4; Assim falou Zaratustra, § 3 e 6; Prefácio, § 8, 1ª dissertação, § 14, Genealogia da moral.

[16] F. Nietzsche, Ecce homo. Paris, Gallimard, 1974, § 4, Prefácio, p. 10 [Coll. Idées]. Na trad. bras ., p. 366. Grifado por Nietzsche.

[17] Idem, ibidem, § 1, p. 105. Grifado por Nietzsche.

Ler com ouvidos é cuidar que esses órgãos se sintonizem na mesma faixa de onda que vibra na boca de quem fala. Leitura viva, de Nietzsche-filólogo. Filologia ativa, como escreve Gilles Deleuze, porque aqui o filólogo trata a fala como uma atividade real, coloca-se no ponto de vista daquele que fala.[18] E se o faz, é porque para ele as palavras que lhe agitam os ouvidos dizem o querer das forças que movem a boca do locutor e fazem-no dizê-las. É essa leitura ativa que permite captar a duplicidade dos Evangelhos, perceber na palavra dos apóstolos os seus gestos, a sua insuportável maneira de erguer os olhos, a sua sedução, o seu servilismo diante da “revelação” do Verbo divino. É essa leitura ativa que leva Nietzsche a designar o filólogo e o médico como anticristãos: “Pois quem é filólogo lê atrás dos ‘livros santos’, quem é médico, atrás da depravação fisiológica do cristão típico. O médico diz ‘incurável’, o filólogo, ‘trapaça’…”[19] É essa leitura ativa que distingue profundamente o filólogo do teólogo:

A mentira como única liberdade – é nisso que detecto o teólogo predestinado. Um outro signo distintivo do teólogo é sua impotência filológica. Por filologia, deve-se compreender aqui, num sentido muito geral, a arte de bem ler – saber ler fatos sem adulterá-los pela interpretação, sem deixar no desejo de compreender toda sua prudência, sua paciência e sua sutileza. A filologia como Ephexis na interpretação: quer se trate de livros, de novidades nos jornais, de destinos ou de fatos meteorológicos – sem falar da ‘salvação da alma’… A maneira como um teólogo, em Berlim ou Roma, pouco importa, disseca uma ‘palavra da escritura’ ou um acontecimento pessoal, uma vitória dos exércitos da pátria à luz superior dos salmos de Davi, por exemplo, é de tamanha audácia que o filólogo subirá por todas as paredes”. [20]

[18] Gilles Deleuze. Nietzsche et la philosophie. Paris, PUF, 1978. p. 84.

[19] F. Nietzsche, L ‘Antéchrist, § 47, p. 77. Na trad. Brás., p. 355. Grifado por Nietzsche.

[20] Idem, ibidem, § 52, p. 87. Grifado por Nietzsche.

Filologia ativa. Leitura onde a linguagem toma corpo através da sintonia do corpo que ouve com o corpo que enuncia. Reencontrar o texto primitivo do homem: retorno da língua à metáfora intuitiva, ao natural da linguagem figurada.

“De tudo o que se escreve, só aprecio o que se escreve com o próprio sangue. Escreve com o teu sangue e descobrirás que o sangue é espírito. Não é fácil ouvir o sangue dos outros: odiosos são, para mim, os ociosos que lêem.”[21]

[21] F. Nietzsche, “Du lire et de l’écrire”, em Ainsi parlait Zarathoustra. Paris, Gallimard, 1971, p. 54 [Coll. Idées].

Publicado in
SANTOS, Laymert Garcia dos. Tempo de Ensaio. São Paulo: Companhia da Letras – Editora Schwarcz, 1989. pp. 13 a 34.

 

tempo de ensaio

Nota: parte deste texto foi publicada, com ligeiras modificações, no Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, v. 44 n. (1/4), São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, janeiro a dezembro de 1983, sob o título “Ler com os ouvidos”.
Imagem no post e na home: variação de Fonte na Corrente (1934) de Paul Klee, ecoando a capa criada por João Baptista da Costa Aguiar para o livro em que este ensaio foi publicado [capa sobre esta mesma obra de Klee].
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