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Escrever logo após uma primeira visão de “Dançando no Escuro” é escrever em estado de choque. Um filme que, ao terminar, deixa o espectador sem fala, suscita mais do que a análise e, antes dela, a tentativa de ordenar e consolidar o que aconteceu e o que se percebeu, para saber por que o impacto é tamanho.

São muitas as entradas possíveis no filme de Lars von Trier, muitas as camadas de sentido que ressoam; porém talvez convenha começar pela impressão mais saliente: sente-se que se trata de um filme-limite numa época-limite. Como se o passado, o presente e o futuro do cinema convergissem numa obra para encenar a paixão do homem do século 20 – e o modo como o cinema pode contribuir para redimi-lo. Como se a visão da nossa época e na nossa época, mas também como se a cegueira dela e a nossa, fossem inseparáveis da experiência do cinema e só pudessem ser apreendidas no escuro de uma sala, diante de uma tela em que imagens e sons elaboram a crise e o renascimento dessa arte enquanto crise e renascimento do homem contemporâneo. “Dançando no Escuro” nos co-move não só por causa de seu enredo ou mesmo do modo como Trier filma um melodrama; não só pela interpretação de Björk, que atualiza, sem no entanto procurar imitá-la, a Joana d’Arc de Falconetti, na obra-prima de Dreyer; nem pelo magistral emprego da tecnologia digital, que permite a Trier imprimir às imagens e à trilha sonora ritmos e tratamentos diferenciados, fazendo-nos passar da vida ao sonho e novamente à vida de modo nunca visto. “Dançando no Escuro” nos co-move porque nele alguém se sacrifica no presente para que a geração futura possa ver. Essa é, no meu entender, a questão fundamental tratada por Trier. Como lidar com a cegueira que progressivamente toma conta de nós? Como fazer para que nosso legado não seja uma herança negativa, mas a possibilidade de recuperação da visão? Como aceitar o sofrimento agora para que o outro seja salvo no futuro? Como saber morrer para libertar o outro da condição que o aprisiona e compromete? Como salvar-se por meio da salvação do outro?

O segredo de Selma

Co-movido, o espectador acompanha na tela o segredo de Selma (Björk): a agonia da jovem operária que está ficando cega e se mata de trabalhar para pagar a cirurgia capaz de curar seu filho da doença congênita que a aflige. Compartilhando esse segredo, vendo e sabendo o que os outros não vêem e não sabem, podemos perceber ao mesmo tempo sua fragilidade e sua força, as dificuldades crescentes que enfrenta e a obstinação que a alimenta.

Heroína anônima e que se ignora, Selma vive, de modo intensificado, as agruras que atormentaram e ainda atormentam os operários de todo o século: a exploração do trabalho fabril, com sua linha de montagem movendo-se numa cadência cada vez mais difícil de acompanhar; as precárias condições de moradia; os bicos feitos depois do expediente; a exaustão, a necessidade, a cruel falta de dinheiro.

Mas, por outro lado, vive também tudo o que se contrapõe, na condição operária, à sua dimensão negativa: a amizade, a solidariedade dos companheiros de trabalho, a oferta do amor, o grupo de teatro com quem deve contracenar numa montagem amadora do musical “A Noviça Rebelde”. Vale dizer: Selma vive de modo intensificado o modo de produção capitalista tal como ele se põe e se repõe no cotidiano dos oprimidos. E é precisamente nesse universo que vemos se inscrever o cinema hollywoodiano contemporâneo dos tempos do fordismo, o correspondente da fábrica na esfera do lazer. Assim, Selma “escapa” da opressão intolerável projetando-se, e à sua vida, no filme musical. Em outros tempos, isto é, antes da queda do Muro de Berlim, em 89, o confronto entre a dura realidade de Selma e o seu sonho pré-fabricado poderia resultar num excelente filme sobre a alienação, como foi o caso de “Rudes Journées pour la Reine”, de René Allio. Trier, no entanto, vai muito além da análise e da crítica: com ele descobrimos que o mecanismo do cinema se constitui para as massas oprimidas e exploradas como vetor de esperança, de libertação, como utopia de um mundo melhor. Isso não quer dizer que o cineasta tenha renegado o Dogma e se reconciliado com Hollywood. Ao contrário, Trier está ainda mais lúcido quanto ao processo, agora que, por compaixão pelos espectadores do cinema industrial, consegue distinguir o que a indústria pretende fazer com eles e o que estes fazem com o que assistem. Por meio de tal distinção, o cineasta pode conferir ao musical um estatuto extraordinário, se considerarmos que a conversão do alienante cinema de massa num utópico cinema interior permite a Selma afirmar, contra o mundo desumano, sua própria humanidade. No chão da fábrica, a operária “faz” cinema! A conversão se opera precisamente por meio da mudança de ritmo que o ouvido humano pode imprimir no universo mecânico; isto é, por meio de uma outra modulação dos sons que faz, da repetição, diferença. A transformação do ritmo sonoro, por sua vez, contagia as imagens, e todos os envolvidos, deixando de lado o trabalho e o sofrimento, se põem a dançar. A chave da conversão encontra-se, portanto, na possibilidade de mudar de ritmo, de ritmo de produção de imagens e de sons, dentro da mente e fora dela -na tela. Pode-se perceber que a mudança começa pela capacidade de ouvir a diferença já no início de “Dançando no Escuro”, uma vez que o filme se abre com a execução de um movimento musical – “O Novo Mundo”. Como numa ópera, o público ouve uma abertura, antes que a cena se abra aos olhos, povoando-os com imagens. O filme se instaura pela trilha sonora e até o final o som terá tanta importância quanto a imagem na concepção cinematográfica, o que, se por um lado evidencia a importância da colaboração de Björk na realização, por outro atesta a sintonia fina que compartem quanto ao potencial artístico da tecnologia digital. Com efeito, para que a diferença no som e na imagem seja ouvida e vista, é preciso que a própria captação se dê como transformação do ritmo mecânico em outra coisa. Assim, não é apenas Selma que constrói uma nova visão, um cinema utópico, em meio à cegueira crescente e à crise. Às cegas, tateando, Björk e Trier exploram as possibilidades de um contracinema, ou melhor, de um novo cinema proletário capaz de se apropriar dos equipamentos eletrônicos, dos gêneros do cinema americano e até mesmo do seu repertório de imagens e sons para transmitir às gerações futuras as condições de uma visão renovada. Por que então assistir “Dançando no Escuro” se revela uma experiência tão dolorosa? Por que, mesmo com a vitória da esperança, saímos do cinema tão traumatizados? Pode um filme acabar bem e mal ao mesmo tempo? Como ocorre em toda situação-limite, a tensão entre forças contrárias e a indefinição da luta que se trava entre o novo e o velho, o bem e o mal, a vida e a morte atingem aqui as raias do insuportável. Mas Trier não procura escamotear a tensão e a indefinição. É que numa época de incertezas as relações não são unívocas, o negativo não cede invariavelmente para o positivo; a conversão pode a todo momento retroceder, o ritmo mecânico e repetitivo impor-se novamente, a velha ordem reinvestir a vida. Mais ainda: a mudança de ritmo não significa necessariamente transformação – os ritmos podem se alternar, e a própria alternância redundar num outro tipo de repetição, levar a nada, levar ao nada. Nessas condições, lutar vale o sacrifício?

Cinema político

A radicalidade de Trier reside no fato de ousar dizer que sim. Quando todos acreditavam não ser mais possível fazer arte revolucionária, o cineasta propõe um cinema utópico, eminentemente político, de combate, justamente no terreno que o capitalismo de ponta mais deseja controlar: a esfera da tecnologia digital. Subvertendo eletronicamente as íntimas relações que o trabalho na sociedade capitalista estabeleceu com os meios de produção hollywoodianos, rompendo a monotonia da cadência, curto-circuitando as projeções do establishment cinematográfico, Trier mostrou que ainda há esperança.

Selma sempre abandonava a sala após o penúltimo número musical, antes portanto da apoteose, antes das últimas imagens. A operária não queria ver tudo, assistir ao esgotamento da utopia, comprometê-la; queria assegurar sua própria capacidade de imaginar, pois o que importava era a imagem por vir. Como os musicais de Selma, “Dançando no Escuro” também não tem fim sua última imagem, presença ausente, existe apenas como pura virtualidade: é o mundo que só a geração futura verá. Um mundo construído por nós, pela utopia dos espectadores do cinema digital.

Publicado in
Folha de São Paulo,  Caderno +mais!, domingo, 03 de dezembro de 2000.
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