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Quem vos fala, o faz a partir de um ponto de vista peculiar, que não é, propriamente, o acadêmico, o do especialista nas assim chamadas Ciências Humanas, mas sim o de um intelectual que tem pela frente, a resolver, uma questão concreta. A questão de buscar estabelecer um diálogo trans-cosmológico, para que as potências do mundo mágico nos ajudem a preservar, tanto para nós, brancos, quanto para os povos tradicionais, a possibilidade de criação de mundos, de mundos melhores, para as gerações futuras.

Ora, para que tal propósito possa acontecer, pareceu-me ser imprescindível começar a abordar a questão do diálogo, a partir do (des)encontro entre técnicas e tecnologias muito diversas, mas contemporâneas, entendendo, porém, que em todos os casos, como afirmou com força Gilbert Simondon, a técnica é a mediação entre o homem e a natureza, um misto estável do humano e do natural. “A atividade técnica – escreve o filósofo – vincula o homem à natureza”. Sabemos, graças ao perspectivismo ameríndio estabelecido por Eduardo Viveiros de Castro, que os sentidos dos termos homem e natureza não só não são os mesmos, como divergem radicalmente, quando passamos da cosmologia ocidental para as cosmologias dos povos indígenas. Porém, creio que a filosofia de Simondon é a que melhor autoriza uma aproximação positiva entre elas, através da atividade técnica. Assim, na prática, o parti pris adotado foi o de que o diálogo trans-cosmológico entre brancos e índios deveria considerar o modo como um grupo de civilizados educados e de xamãs Yanomami se relacionam com a natureza, operando, junto com ela, dispositivos técnicos que ambos, homens e natureza, produzem, e que, por sua vez, produzem devir, transformação, mundos.

Muitas vezes, quase sempre, o encontro de brancos e índios mediado por tecnologias ocidentais e mágicas é um desencontro, uma relação carregada de negatividade para os índios e, portanto, destrutiva. Nosso desejo e, ao mesmo tempo, nosso desafio, era tentar fazer com que essa relação fosse positiva, por e para si mesma, em sua imanência, e assim sendo, afirmativa para os interlocutores de ambos os lados.

Atendendo a um pedido de Davi Kopenawa, conseguimos condições para realizar, em março de 2011, um encontro de 37 xamãs de todo o território Yanomami, na aldeia de Watoriki, situada quase na fronteira com a Venezuela, no Estado de Roraima. Mas, para justificar a empreitada junto às instituições que a financiavam, propusemos a realização de um filme sobre o xamanismo. Os Yanomami concordaram; pensaram que este poderia ajudá-los em sua permanente campanha pela defesa do território, procurando tornar conhecido e reconhecido mundo afora o valor de sua cultura.

Vieram, então, os xamãs Yanomami, com suas técnicas ancestrais, e chegamos nós, os brancos, com nossas máquinas digitais, na aldeia de Watoriki, que quer dizer “serra dos ventos”, em plena terra-floresta. Eles com seus modos próprios de produzir imagens, nós com os nossos. O mote de nossa conversa, de nosso entendimento-desentendimento configurou-se, precisamente, como a geração da imagem.

A imagem desempenha no xamanismo Yanomami um papel central e especialíssimo. O antropólogo Bruce Albert, que trabalha com essa etnia há mais de trinta anos e que participa de nosso projeto a definiu com grande precisão da seguinte maneira:

As imagens (utupë) que os xamãs yanomami “invocam”, “fazem descer” e “fazem dançar” – no sonho ou no transe – são (essencialmente, mas não só) as dos ancestrais “humanimais” que viviam nos tempos das origens (…). De tais imagens, diz-se que têm “valor de espectro” (…) dos seres primordiais, dotados de uma “pele” (corpo) humana e de um nome (identidade) animal. Elas são percebidas pelos xamãs sob a forma de uma infinita multiplicidade de humanoides minúsculos, enfeitados com pinturas corporais e ornamentos de luminosidade ofuscante.

Tais seres-imagens corpusculares, espécie de quanta mitológicos, povoam o mundo em estado livre, envolvidos numa incessante atividade de jogos, trocas e guerras que sustenta a dinâmica dos fenômenos visíveis. Uma vez instalados, durante a iniciação, numa morada celeste associada ao jovem xamã, eles se tornam seus “filhos”, uma forma “aparentada” das imagens humanimais do “primeiro tempo”. Segundo o jargão etnográfico, eles são então “espíritos auxiliares” (xapiri pë). Assim domesticados, os xapiri pë são selecionados e combinados em cada sessão xamânica, segundo seus atributos e suas competências. Em função das necessidades do momento, eles servem como referentes interpretativos e vetores de intervenção para os xamãs que com eles se identificam no transe.

Albert alerta para os mal-entendidos que o emprego da própria noção de “imagem” provoca nesse contexto, pois os Yanomami também utilizam o termo utupë para designar todas as nossas manifestações iconográficas (imagens no papel ou digitais, animadas ou não), bem como as representações plásticas (desenhos, gravuras, pinturas, estátuas) ou modelos reduzidos (jogos e miniaturas). Além disso, o termo também designa o reflexo de uma pessoa na água ou num espelho, a sombra ou o eco (a “imagem do som”) e as gravações sonoras – “imagem de falas”. Por fim, escreve o antropólogo, “além de sua acepção relativa ao “valor de espectro” dos ancestrais humanimais, utupë também designa um componente ontológico fundamental de todo existente” – a imagem do corpo e a essência vital associada ao sangue e à energia corporal.

Por tudo isso, utupë é um tipo de imagem que não pode ser confundido com nossas noções de representação. Segundo Albert, “esse modo fundamental de ser-imagem (ancestrais “humanimais” e/ou constitutivo da pessoa) ao qual o “ver” xamânico do sonho e do transe dá acesso, constitui o centro de gravidade do pensamento ontológico e cosmológico yanomami.” Mas, adverte ele, mesmo procedendo de sonhos ou induzida por alucinógenos, essa imagem também não deve ser compreendida como nossas usuais imagens mentais ou “visões interiores”. “Com efeito”, escreve Albert, “as imagens dos seres primordiais descritas pelos xamãs com grande profusão de detalhes estéticos, o são antes de tudo a título de percepções diretas de uma realidade externa absolutamente tangível (o “ver” é aqui autenticamente “conhecer”). Além disso, elas também são tornadas visíveis para o público das “pessoas comuns” que assistem às sessões dos xamãs quando estes se assimilam, durante o transe, aos seres-imagens mitológicos que “fazem dançar”.” Através dos cantos e da coreografia associados a cada um de seus xapiri pë eles próprios se tornam verdadeiros “corpos condutores” dos ancestrais humanimais.

Albert distingue, então, dois modos principais de identificação com os seres-imagens primordiais durante as sessões xamânicas. E são eles que me interessam particularmente, aqui, porque implicam uma questão de modulação que eu gostaria de aproximar das reflexões de Gilbert Simondon e de Etinne Souriau; no primeiro caso, sobre o acoplamento homem-máquina e, no segundo, sobre a obra de arte como obra por fazer.

Em nosso grupo de trabalho definimos a articulação desses dois modos como a “passagem da imagem” pelo corpo do xamã. Com a palavra, o antropólogo:

Tais modos constituem na verdade graus de “devir-imagem” imbricados um no outro, numa espécie de vai e vem ontológico. No primeiro modo os xamãs efetuam a dança de apresentação genérica dos ancestrais humanimais convocados como auxiliares e seus cantos descrevem a aparência e as atividades desses seres-imagens, bem como as paisagens cosmológicas nas quais evoluem (momento narrativo, interioridade/exterioridade das imagens). No segundo modo, frequentemente mais curto e esporádico, seu corpo é de repente totalmente transformado por uma assimilação mais íntima com os seres-imagens mitológicos: a gestualidade e os cantos – tornados sucessões de onomatopeias – remetem então diretamente aos daqueles seres humanimais específicos que são a cada vez invocados (momento intensivo, plenitude do ser-imagem). Pode-se então considerar que durante esse processo os xamãs são tomados a título de suportes (meios) vivos pela linha de fuga dos seres-imagens que vão vendo e presentificando em suas sessões. Eles constituem assim espécies de “corpos-telas” atravessados pela fita das formas ontológicas (re)tornadas dos tempos míticos.

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Em seu livro Do modo de existência dos objetos técnicos, Simondon afirma que o primeiro técnico é o xamã, o medicine man que surge na mais originária fase da relação entre o homem e o mundo. Como escreve Simondon:

Podemos denominar essa primeira fase fase mágica, tomando a palavra no sentido mais geral, e considerando o modo de existência mágico como aquele que é pré-técnico e pré-religioso, imediatamente acima de uma relação que seria simplesmente aquela do ser vivo com o seu meio.

O que faz então o primeiro técnico? O filósofo aponta que ele traz para sua comunidade um elemento novo e insubstituível produzido num diálogo direto com o mundo, um elemento escondido ou inacessível para a comunidade até então.

No caso dos xamãs yanomami que estamos abordando aqui, é interessantíssimo perceber que o processo técnico de produção de seres-imagens é extremamente complexo e preciso. Com efeito, tudo se passa como se, alterando a sua percepção através da inalação da yãkohana, ampliando seu estado de consciência, os xamãs podem ter acesso ao que Simondon chama de realidade pré-individual, àquilo que o filósofo considera como sendo “o centro consistente do ser”, plano das intensidades, das potências e das virtualidades, plano a partir do qual se dá a tomada de forma, a concretização e a invenção. Tudo se passa como se os xamãs modulassem a recepção dos seres-imagens e fossem modulados pela manifestação destes, revelando, em pleno estado alucinatório, uma maestria impensável para o mais versado dos ocidentais nos estados alterados de consciência.

Para ilustrar o que estou dizendo, gostaria de narrar um episódio que aconteceu em agosto de 2009, durante um workshop organizado com um grupo de xamãs, em Watoriki, no âmbito da ópera Amazonia, que fizemos em parceria com eles.

Como de hábito, os xamãs faziam seu ritual, inalando yãkohana, cantando, dançando, falando… Subitamente, Levi Hewakalaxima dirigiu-se a Albert, apontou para nós, pôs a mão no próprio peito e disse, em yanomami: “Diga a eles que estou baixando em meu peito a imagem do canto-palavras do pássaro oropendola.” E de imediato “sintonizou” novamente o ritual, voltando a cantar e a dançar.

Fiquei assombrado. Pois me pareceu que, durante essa espécie de download de um arquivo audiovisual, o corpo de Levi funcionava ao mesmo tempo como hardware e como software, processando um programa que estava sendo rodado pela mente do xamã como som-canto do xapiripë, tornando-se uma imagem que será “lida” como uma espécie de partitura pelo intérprete. De acordo com as palavras de Albert, “os sons-cantos do xapiripë vêm primeiro: as imagens mentais induzidas pela yãkohana tomam forma a partir de alucinações sonoras; o que significa um devir imagem do som.”

Esse ponto apareceu-nos (a Albert e a mim mesmo) como uma verdadeira possibilidade de uma ligação entre o universo mágico Yanomami e as experiências estéticas mais avançadas no campo das tecnologias digitais de produção de imagem.

Trata-se do seguinte: com suas técnicas apuradíssimas, os xamãs veem o que não podemos ver, e que permanece invisível para nós. Mas podemos ver como seus corpos, ao incorporarem os seres-imagens, expressam a passagem destes, ou seja, a metamorfose. Graças a um acoplamento homem-máquina que atualize o máximo das potências do humano e dos aparelhos podemos transformar a passagem das imagens em imagens de passagem, modulando o processo de concretização de tal modo que o visível apareça como uma espécie de configuração-desfiguração-reconfiguração capaz de nos permitir, pelo menos, contaminar a geração de nossas imagens com alguns princípios operatórios análogos aos praticados por eles. É claro que tal procedimento não torna visível o invisível; mas abre o visível para um movimento de ampliação da percepção e da mente que nos permite esboçar uma impressão estética da riqueza, da complexidade, da beleza, e até mesmo da vertigem, dos riscos inerentes à viagem xamânica.

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É quase impossível para nós compreendermos plenamente o que acontece com o xamã quando incorpora o xapiripë de um pássaro. Nos iludimos a nós mesmos, fingindo que sabemos do que se trata, só porque entendemos intelectualmente o sentido das palavras que descrevem tecnicamente o processo de passagem do ser-imagem. Mas podemos nos aproximar de um modo mais intenso, podemos sentir de alguma maneira o que está em jogo, através da arte produzida por Leandro Lima e Gisela Motta, a partir das imagens captadas no encontro de xamãs. E se o podemos fazer, é porque o pensamento estético tem uma relação profunda com o pensamento mágico.

Voltemos a Gilbert Simondon. O que faz o pensamento mágico? O filósofo escreve:

O modo mágico de relação com o mundo não é totalmente desprovido de organização; ao contrário, ele é rico em organização implícita, vinculada ao mundo e ao homem: nele a mediação entre o homem e o mundo ainda não é concretizada e constituída separadamente, por meio de objetos e de seres humanos especializados, mas ela existe funcionalmente numa primeira estruturação, a mais elementar de todas – a que faz surgir a distinção entre figura e fundo no universo. A tecnicidade aparece como estrutura resolvendo uma incompatibilidade: ela especializa as funções figurais, enquanto as religiões especializam por sua vez as funções de fundo; o universo mágico originário, rico em potenciais, se estrutura desdobrando-se.

 

Segundo Simondon,

 

tal distinção entre figura e fundo opera a marcação de pontos-chave no universo, toda uma reticulação do espaço e do tempo, como se todo o poder de agir do homem e toda a capacidade do mundo de influenciar o homem se concentrassem nesses lugares e nesses momentos. Tais lugares e momentos detêm, concentram e exprimem as forças contidas no fundo de realidade que as suporta. Tais pontos e momentos não são realidades separadas; eles tiram sua força do fundo que dominam; mas localizam e focalizam a atitude do ser vivo face a seu meio.

 

Assim, para o filósofo,

 

o universo mágico é feito da rede de lugares de acesso a cada domínio de realidade, e consiste em limiares, em ápices, em limites, em pontos de passagem, vinculados uns aos outros por sua singularidade e seu caráter excepcional.

É esse universo mágico que encontramos em ato na prática dos xamãs yanomami. E como tal universo pode se encontrar com a arte? Aqui, cabe a reflexão de Simondon sobre a obra de arte e o pensamento estético.

 

A obra de arte refaz um universo reticular, ao menos para a percepção. Mas a obra de arte não reconstrói efetivamente o universo mágico primitivo: esse universo estético é parcial, inserido e contido no universo real e atual resultante do desdobramento. Na verdade, a obra de arte mantém sobretudo, e preserva, a capacidade de experienciar a impressão estética, como a linguagem mantém a capacidade de pensar, sem no entanto ser o pensamento. (…) a impressão estética verdadeira pertence à realidade experienciada como realidade; a arte instituída, a arte artificial ainda não é senão uma preparação e uma linguagem para descobrir a impressão estética verdadeira; a impressão estética verdadeira é tão real e tão profunda quanto o pensamento mágico; ela resulta do encontro real entre as diferentes modalidades particulares, recompondo a unidade mágica em si mesma, devolvendo essa unidade após uma longa disjunção.

 

A arte é uma preparação e uma linguagem para a descoberta da impressão estética verdadeira. A impressão estética verdadeira é tão real e tão profunda quanto o pensamento mágico. Por que repetir, sublinhando, os enunciados de Simondon? Porque quero que percebam que eles nos permitem entender em que terreno, ou melhor, em que interface, em que intersecção podemos, com nossas máquinas de produzir imagens, nos aproximarmos das técnicas xamânicas de produção de imagens. Mas, ao mesmo tempo, tentar fazer compreender que a arte é uma preparação e uma linguagem para a descoberta da impressão estética verdadeira. O que significa que esta não se encontra no campo da arte, mas aquém e para além dela.

O entendimento pleno do que Simondon está dizendo pode nos auxiliar a captar o que dizem os xamãs yanomami a respeito da arte ocidental, quando confrontados com ela. Isso se apresentou para mim, de modo enigmático, em duas ocasiões. Uma delas ocorreu após a estreia da ópera multimídia Amazonas, em Munique. No dia seguinte, ao término de um almoço, o crítico de música do Die Zeit Klaus (nome ou sobrenome faltam?) perguntou ao xamã Davi Kopenawa o que ele achava da arte dos brancos. Klaus havia estado em Watoriki conosco, havia desfrutado por alguns dias a convivência com os Yanomami e viera de Hamburgo para ver o espetáculo que havíamos concebido e no qual os xamãs haviam participado. Davi respondeu, com serenidade e segurança, que a ópera era importante para divulgar a defesa do território e da cultura yanomami, e que achava que a arte é boa para os brancos. Mas fez uma ressalva, que deixou todos os brancos presentes perplexos, ao afirmar: “Nós, xamãs, não sentimos a necessidade de tudo explicar. Essa necessidade de explicação é infantil, coisa de criança.”

Ouvindo as palavras de Davi Kopenawa, minha mente associou-as imediatamente com uma observação feita por Levi Hewakalaxima ao término de uma visita guiada pelo museu do ZKM, de Karlsruhe, o maior centro de arte e tecnologia da Europa, em 2008. Seu diretor, Peter Weibel, havia mostrado aos xamãs, com direito a tradução impecável para o yanomami, o acervo de obras realizadas pelos principais artistas multimídia do mundo. Os xamãs haviam entrado nas instalações interativas, acionado os sensores, participado. Depois de ver tudo, Levi comentou: Os brancos são como crianças, eles adoram brinquedos…

         Os comentários de Davi e de Levi se fundiram em minha cabeça e não pararam mais de interpelar meu entendimento da arte contemporânea. Sem terem a mais leve intenção de menosprezar o que fazem os artistas ocidentais, os xamãs haviam levantado um enorme ponto de interrogação. Pois se aos olhos dos xamãs a arte que os brancos praticam é coisa de criança, o que lhes poderia aparecer como uma arte adulta?

Simondon pode nos ajudar a entender o alcance da questão ao apontar que a arte é uma preparação e uma linguagem para a descoberta de uma impressão estética verdadeira. Mas aí, surge uma nova pergunta: o que será que vai acontecer, quando deixarmos de ser meros aprendizes, quando tivermos acesso a uma impressão estética verdadeira? Vamos poder avaliar o que os xamãs estavam querendo dizer? E vamos descobrir que tal impressão é análoga à que os xamãs experienciam, em seu universo mágico? Simondon afirma que a impressão estética verdadeira pertence à realidade experienciada como realidade. Ora, em sua etnografia da passagem da imagem no xamanismo yanomami, Albert escreve que “as imagens dos seres primordiais descritas pelos xamãs com grande profusão de detalhes estéticos, o são antes de tudo a título de percepções diretas de uma realidade externa absolutamente tangível.” Tudo leva a crer, portanto, que os xamãs experimentam uma impressão estética verdadeira. Mas, como não vivemos no universo mágico, como e quando poderíamos experimentá-la?

         Tais perguntas talvez encontrem um encaminhamento de resposta no magnífico texto de Etienne Souriau intitulado De l’oeuvre à faire. Nele, o filósofo pensa de modo radical o modo de existência da obra de arte e que tipo de experiência-limite ela implica, e que ele designa através do termo instauração. Não há tempo, agora, para alongar-me sobre o assunto. Mas suspeito que no pensamento de Souriau resida a reflexão sobre o que há de sublime, e também o que há de perigoso, na impressão estética verdadeira. Tão sublime e tão perigoso, talvez, quanto uma viagem xamânica.

Ora, essa obra de arte, tema que assombra filosoficamente Souriau, não é outra coisa senão a realização plena do humano. Assim, escreve o filósofo:

 

Sabemos todos que cada um de nós é o esboço de um ser melhor, mais belo, superior, mais intenso, mais pleno, e que, portanto, é, ele mesmo, o Ser a realizar, e cuja realização lhe cabe. De modo que, aqui, a existência plena não é apenas uma esperança, ela também responde a um poder. Ela exige um fazer, uma ação instauradora. Esse ser pleno (…) é a obra por fazer. E como o acesso a uma existência mais real tem tal preço, não podemos escapar, no que tange a nós mesmos, à necessidade de nos interrogarmos sobre o modo de existência dessa obra por fazer. Ela nos concerne. (…) E, evidentemente, sabemos todos, que se dá o mesmo se, em vez de pensarmos em nossa pessoa, pensamos no Homem, como aquilo que deve ser instaurado.

 

Palestra proferida em 02 de abril de 2012, no evento Informação, tecnicidade, individuação: a urgência do pensamento de Gilbert Simondon, realizado de 02 a 04 de abril de 2012, na Universidade Estadual de Campinas, IFCH – UNICAMP, com organização do grupo de pesquisa Conhecimento, Tecnologia e Mercado – CTeMe.
Imagens no post: edições a partir de stills do filme Xapiri, 2012 – Direção: Leandro Lima e Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra, e Bruce Albert
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