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Tornar-se outro para ser si mesmo: Francis Alÿs dentro da fronteira

 

Se fosse possível resumir em pouquíssimas palavras o trabalho de Francis Alÿs, talvez fosse o caso de dizer que ele consiste em traçar uma linha. Com efeito, são muitas as obras em que o traçar uma linha emerge como fator decisivo, fundante. Sem pretender ser exaustivo, ou até mesmo sistemático, basta lembrar a linha criada pela pisada do artista no chiclete, em The Moment Where Sculpture Happens; a linha azul de seu sweater se desfazendo pelas ruas, em Fairy Tales; a linha de tinta escorrendo durante seu passeio por São Paulo, em The Leak, posteriormente retomada no redesenho da Linha Verde de Moshe Dayan, em Jerusalém, em The Green Line; a linha de água do gelo derretendo pelas ruas da Cidade do México, em Paradox of Praxis 1, linha que vai do tudo ao nada; a linha de tocos de cigarro „esculpida“ pela varredora de rua, em Para R.L., já esboçando a linha dos varredores do lixo, também na capital mexicana, em Barrenderos (Sweepers), que por sua vez será mais tarde retrabalhada numa outra dimensão e com outro sentido pela linha de centenas de jovens deslocando a montanha nos arredores de Lima, em When Faith Moves Mountains; a linha de The Loop, que liga as cidades vizinhas de Tijuana e San Diego, preferindo abraçar o Oceano Pacífico em vez de atravessar a fronteira entre o México e os Estados Unidos; a linha da fuite en avant, perseguindo no fim do mundo as miragens que desfazem a linha do horizonte, em A Story of Deception; a linha da perambulação da raposa na National Portrait Gallery, de Londres, captada pelas câmeras de vigilância, em The Nightwatch; a linha puxada pelo artista, quando leva The Collector para passear pela cidade; a linha do colar de pérolas presente e ausente na série de pinturas de Set Theory; a linha invisível que ata a evolução da troca de mercadorias, em Trueque (The Swap); a linha de carneiros seguindo o artista e rodeando o mastro da bandeira na praça do Zócalo, em Cuentos Patrióticos; a linha de sombra do próprio mastro, projetando um relógio no chão da praça, em Zócalo; a linha dos passos dos manifestantes, desenhada em Manifestación; as linhas de memória das caminhadas, em Knots; o alinhamento dos barcos, de Key West , na Flórida, a Santa Fé, em Havana, construindo Bridge/Puente entre os dois países inimigos; a linha melódica da modernização ocidental, eternamente imposta, interrompida e reposta como promessa em suspensão, em Rehearsal 2, definindo o „tempo mexicano“; a linha „perdida“ dos Cantos Patrióticos; a linha circular da animação Song for Lupita, círculo vicioso; a linha tênue entre ficção e documentário, reelaborando o material de Amores Perros, filme de Iñarritu, em Rehearsal; as linhas cruzadas interligando o tempo verbal do gerúndio e as palavras, em The Logic of Ñandú; as linhas de pensamento e as linhas de ação coletiva, em vários trabalhos.

The Green Line, 2004.
When Faith Moves Mountains, 2002.

Mas, uma vez constatada a importância da linha, impõe-se imediatamente a evidência de seu caráter paradoxal, pois a diversidade e profusão de linhas parece, antes de tudo, contrariar uma lógica linear ao afirmar uma multiplicidade de conexões e de sentidos para o seu traçado, inscrito numa desconcertante variedade de planos, e nos intervalos que ligam um plano a outro. Por isso, o traçado da linha nunca é unidimensional e sua expressão nunca pode ser atribuída exclusivamente à literalidade de um gesto. Afinal, a linha tanto pode ser criada quanto encontrada, desenhada , esculpida ou simplesmente concebida, feita ou desfeita, visível ou invisível, desdobrada ou interrompida, afirmativa ou negativa, intuitiva ou refletida, individual ou coletiva – mas é sempre estético-política, sejam quais forem os planos em que ela se encontra. Como se seu modo de existência se caracterizasse pela variação infinita, e, no entanto, como se ela marcasse, a cada vez, as linhas de força de linhas de ação em constante transformação. Assim, a linha está sempre atualizando num acontecimento as virtualidades de alguma relação entre o humano e o meio; entretanto, ao se afirmar, ela já está ao mesmo tempo se predispondo como potencial para a abertura de novas resoluções. Desse modo, como nos processos de cristalização, as linhas de Alÿs são efetuações que ocorrem no limite entre o que é, o que já foi criado, e o que está por vir. Talvez por essa razão seja impossível separar, no traçado de uma linha de ação de Francis Alÿs o que remete à arte e o que remete à vida, tamanha é a simbiose entre essas duas dimensões no trabalho do artista.

Alÿs traça uma linha. Porém, o que significa, aqui, o verbo traçar? Tudo se passa como se, além ou aquém da intenção, Alÿs, ao traçar a linha, entrasse nela, passasse a habitá-la e a viver dentro dela, como se ela fosse, não um risco numa superfície mas um espaço a ser percorrido, assim como a cidade, o quadro („walk the painting“), ou a fronteira entre Israel e Palestina. Resulta, então, que a linha passa a marcar e a demarcar, simultaneamente, marcando ao demarcar, e demarcando ao marcar. Ou seja, inscrevendo no humano e no mundo o traço constitutivo que institui o corpo e o espírito do artista em sua sintonia e ressonância com o meio, que se torna, como eles, qualificado em seu caráter único. Nesse sentido, traçar uma linha equivale a encontrar uma brecha, uma fissura no espaço irrespirável do já dado e, penetrando nela, abrir a reconfiguração do espaço-tempo numa perspectiva inédita, abrindo-se para ela. Traçar uma linha equivale, então, a exercer e a exercitar a liberdade plena num contexto de opressão. Traçar uma linha decorre de uma exigência – pois, como Gilles Deleuze e Félix Guattari, Alÿs não tolera o intolerável.

A linha é, portanto, borderline em diversos sentidos. Ora, tudo indica que Alÿs se insinua dentro dela para criar condições que permitam à vida fluir e romper, por minimamente que seja, os obstáculos e barreiras de toda sorte que a represam no marasmo da repetição, da sujeição e da submissão. A arte de traçar uma linha exige um comprometimento absoluto com a transformação do mundo e com a liberdade da criação, Daí o engajamento duplamente político do artista: político na arena dos homens e da pólis, político no campo das artes.

REEL-UNREEL, 2011 (still).

Alÿs não é um artista do Primeiro Mundo que adotou o Terceiro porque se identificou com os subdesenvolvidos ou porque quer “ajudar” os pobres e oprimidos. Sua linha de ação é outra: Alÿs sabe que só é possível liberar o Primeiro Mundo, e liberar-se dele, se o Latino-Americano, o seu Outro, também liberar-se, liberando o Terceiro. Assim, sua ação estético-política é de enorme valor para nós, latino-americanos. Alÿs se torna um cúmplice do que há de mais rebelde no subdesenvolvido, tanto em termos de criação quanto de resistência. Ele entende seus afetos, seus sentimentos e suas razões, abraça a positividade de suas forças, mas não compactua com suas fraquezas. Assim, seu compartilhamento, mesclado à sua crítica, é tão intenso, que seu espírito parece ao mesmo tempo, e paradoxalmente, fundir-se com o outro sem deixar de ser ele próprio, mantendo a máxima distância. Nesse passo, Alÿs aparece como uma espécie de interface na qual o homem ocidental e o nativo latino-americano vão se encontrar para exorcizar o colonialismo e o neo-colonialismo, pois a interface abarca e absorve as duas perspectivas. Entretanto, é preciso perceber que tal superação não se efetua apenas no sentido colonizador-colonizado mas, igualmente, no sentido inverso, uma vez que a simpatia para com o periférico também o leva a ver o europeu de fora, e a lançar um olhar crítico feroz sobre a situação no Centro. Por isso mesmo, sua obra pode ser apreendida sob a dupla perspectiva do Norte e do Sul, do Centro e da Periferia. Por isso, também é preciso captá-la e compreendê-la como um exercício político de afirmação que envolve tanto o criador quanto o espectador, a ponto de tornar essas duas categorias intercambiáveis, uma vez que ambos adquirem, através do trabalho, uma consciência crítica de suas próprias limitações e um desbloqueio de suas potencialidades.

A arte de Alÿs é a manifestação de um encontro liberador entre Eu e o Outro, no qual Eu torna-se Outro para poder, enfim, ser ele mesmo – operação de conversão da negatividade em afirmação. No traçado da linha, dentro da borderline, no no man’s land, o indivíduo, o transindividual e o coletivo se tramam e se gestam.

Francis Alÿs Sometimes Making Something Leads to Nothing – Paradox of Praxis 1

Publicado in

Santos, Laymert Garcia dos, “Becoming Other to Be Oneself: Francis Alÿs Inside the Borderline”. In Godfrey, Mark; Biesenbach, Klaus; Greenberg, Kerryn (eds.) Francis Alÿs: A Story of Deception, London, Tate Publishing, 2010, pp. 188-189. Translated by Steve Berg. On the occasion of the exhibition Francis Alÿs: A Story of Deception, Tate Modern, 15 June – September 2010; Wiels, Brussels, 9 October – 30 January 2011; The Museum of Modern Art, New York, 11 May – 1 August 2011.

Este post também está disponível em: English (Inglês)

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