[I] Os críticos de arte e comentadores da obra de Partenheimer, sejam eles europeus, chineses ou brasileiros, freqüentemente apontam para o caráter meditativo, aéreo, alegre, imaginativo, e até mesmo lírico de seus desenhos e pinturas, sem esquecer, obviamente, do enigmático equilíbrio que torna sua obra inconfundível, e do silêncio que parece habitá-la (que se pense nas séries do Diário Romano, de Carmen, de De Coloribus, de…
Esta página é um registro do processo de produção da ópera Amazônia – Teatro Música em Três Partes e apresenta minha reflexão sobre tal experimento transcultural.
O projeto teve Concepção artística de Peter Ruzicka, Peter Weibel, Laymert Garcia dos Santos; Consultoria de Bruce Albert, Davi Kopenawa Yanomami, Siegfried Mauser; Iniciativa de Joachim Bernauer, José Wagner Garcia. Realização do SESC São Paulo, Instituto Goethe, Bienal de Munique (Ale), ZKM | Centro de Arte e Mídia de Karlsruhe (Ale), Hutukara Associação Yanomami, Teatro Nacional de São Carlos de Lisboa (Por).
O texto aqui apresentado de maneira resumida, foi publicado na íntegra no capítulo 2 do livro Amazônia Transcultural: xamanismo e tecnociência na ópera, publicado em edição bilíngue pela Editora n-1, em 2014. Tal publicação registra o processo, comenta o espetáculo e reflete sobre suas implicações estético-políticas.
Para comentários sobre a concepção do projeto, a parceria com os Yanomami e discussões conceituais, clique aqui.
Amazônia – Teatro Música em Três Partes – Segunda Parte
Uma vez estabelecida a moldura geral que forneceu os parâmetros para os criadores, passemos agora à obra propriamente dita, isto é, ao que foi encenado. Oficialmente, a ópera Amazônia foi denominada Teatro Música por razões próprias ao mundo musical de Munique, que reserva a designação “ópera” para um segmento muito específico do universo operístico contemporâneo. Mas, para todos nós que trabalhávamos na realização do espetáculo, Amazônia sempre foi entendida como uma ópera multimídia contemporânea.
No programa que acompanhou as apresentações do espetáculo, em São Paulo, uma sinopse explicitava o porquê de três partes – TILT, A Queda do Céu, Conferência Amazônia – Na expectativa da aptidão de um método racional para a solução do problema climático [1] – e resumia o que cada uma delas abordava:
[1] Por se tratarem de três partes autônomas, embora interligadas, é possível encená-las tanto separada quanto conjuntamente. Assim, TILT foi apresentada em Rotterdam, em 2010, enquanto TILT e A Queda do Céu foram encenadas conjuntamente de 25 a 27 de abril de 2013, no Neubau, de Viena, na programação de Out of Control 2013 – Festival for New Music Theatre.
“Três partes relativamente independentes para três tipos de olhar sobre a história da Amazônia:
O olhar à distância
É o olhar do europeu, dos ‘descobridores’ e conquistadores, ao mesmo tempo um olhar retrospectivo no conhecimento das consequências. O libreto desta parte monta fragmentos do Relato do Descobrimento, de Sir Walter Raleigh, de 1596. São temas o temor à natureza, a luta – e o ouro, sobretudo o ouro. Klaus Schedl divide o libreto em três personagens e transporta os textos para uma paisagem sonora de extremos musicais que, ao mesmo tempo, deixa entrever a distância e a atualidade do antigo relato.
O olhar de perto
É o olhar dos indígenas, dos Yanomami, de um dos maiores povos da Amazônia, que pôde conservar suas tradições, e seu representante, o xamã Davi Kopenawa Yanomami. O mito da criação dos Yanomami é contado, e a escuta se dá em primeiro plano, como sentido de orientação central. Os brancos aparecem na tríade pesquisador, missionário e garimpeiro como incorporação da Xawara, espírito do mal. A música, que frente ao texto sempre tem um significado maior e insere momentos da tradição indígena, foi composta pelo brasileiro Tato Taborda, que dispõe as vozes concorrentes da Xawara e do Xamã nos dois extremos de um enorme espaço sonoro-imagético, e convida o público para se levantar e navegar individualmente por esta terra-floresta.
O olhar para o futuro
A terceira parte surge como projeto multimídia do ZKM – Centro de Arte e Mídia de Karlsruhe, com concepção de Peter Weibel e composição de Ludger Brümmer. Esta parte está dividida em três momentos: Paraíso, Conferência, Entropia. No primeiro momento, o princípio de criação algorítmica na natureza se torna o princípio da criação artística visual e musical, seguindo as regras do Game of Life, inventadas por John Horton Conway. No segundo momento, o objetivo dos criadores do Teatro Música é a comoção do público através de argumentos racionais, apresentados no formato de uma conferência político-científica, numa tentativa de substituir o tradicional método operístico de privilegiar o acionar da emoção. No momento final, o público é surpreendido com uma polêmica autoatribuição dos argumentos desgastados.
Uma noite, três partes fundamentalmente diferentes, três dimensões de um tema, no qual se discute um pedaço do futuro global.”[2]
[2] “Sinopse” in Amazônia – Teatro música em três partes. Sesc São Paulo Pompeia, 21 a 25 de julho de 2010, p. 7.
Três partes, três olhares. Cada uma delas dura aproximadamente uma hora. No entanto, tal duração se desenrola de modo diferente. Pois se em TILT assistimos a um único momento – o momento da carta de Raleigh à rainha Elizabeth I –, em A Queda do Céu temos dois momentos – o momento da conversa entre o Xamã (xapiri thëpë) e os espíritos auxiliares (xapiri pë); e o momento do confronto entre o Xamã e a Xawara, que desemboca na queda do céu. Finalmente, a Terceira Parte conta com três momentos, como assinalado na sinopse. Assim, à medida que a obra vai se desenrolando, as partes vão se desdobrando e criando complexas interrelações.
Vejamos a Primeira Parte, TILT, com música composta por Klaus Schedl, texto e dramaturgia de Roland Quitt, e direção e concepção de vídeo de Michael Scheidl.
Como observa Roland Quitt, “a expressão de língua inglesa to tilt denomina a inclinação e posição torta de um objeto. Conhece-a quem antigamente se ocupava da extinta arte do jogo pinball. A palavra tilt se destaca quando, através de abalo ou virada da superfície de jogo, ocorreu a tentativa de um ataque externo, que irritou a sensibilidade do sistema. Tilt significa: as luzes cintilam, mas nada mais reage. Tilt significa: (…) risco perdido, jogo vencido. Tilt significa: o jogo terminou porque você foi longe demais na sua tentativa de manipular. Tilt significa: passou, e mea culpa porque passou.” [3] Em suma: como se diz em português: “Deu tilt!”
[3] Roland Quitt, “TILT”. In Amazonas – Musiktheater in drei Teilen. Programm. 12a Münchener Biennale/ Internationales Festival für neues Musiktheater. 27 April-12 Mai 2010, p.24. Na versão brasileira, p.30.
Ora, em se tratando de Amazônia, e vendo a questão com recuo, à distância, quando se dá o tilt? No começo do fim, ou no fim do começo? No turning point da devastação, ou no estabelecimento de uma lógica que só pode culminar na destruição? Voltando ao passado, aos tempos do “descobrimento” da América, mas segundo a ótica da retroperspectiva, TILT exuma a narrativa de Sir Walter Raleigh, The discovery of the large, rich, and beautiful empire of Guiana como o documento inaugural e paradigmático que, a um só tempo, abre o jogo e anuncia o fim de jogo, no momento mesmo de sua enunciação.
Trata-se do relato da expedição de Raleigh à Bacia do Orinoco, expedição fracassada porque o explorador não conseguiu chegar a Manoa, capital da Guiana, terra que os espanhóis chamavam de El Dorado. Narrativa, portanto, de uma miragem construída à base de outros testemunhos. Importa, porém, que, por um lado a carta é um modelo do modo de ocupação colonial que o Ocidente implantou nas Américas; e, por outro, que ela tem por objeto essa região tão próxima do território yanomami. Assim, Raleigh encarna o homem branco e se torna, literalmente, o porta-voz de uma enunciação que atravessa cinco séculos de ocupação e conquista.
(…)
Em TILT, Roland Quitt adaptou o relato de Raleigh para que a dramaturgia se estruturasse a partir da lógica da cobiça, da conquista e do cálculo. (…) Acarta, então, se transforma na enunciação e explicitação da lógica do ouro, pontuada pelo contato com a terra, com a natureza e as gentes de El Dorado, que suscitam, sucessivamente, encanto, admiração, medo, imaginação desbragada, vontade de vencer a floresta e de possuí-la, desejo de enganar os índios, de roubá-los, de oprimi-los, de vencê-los, tudo levado de roldão na fúria da conquista.
Concebido para ser ouvido e visto como um tilt, o relato de Raleigh, na adaptação de Quitt e na montagem de Michael Scheidl, coloca o público na posição do espectador que presencia a enunciação da carta, como se fosse contemporâneo de sua formulação. Mas, ouvi-la, aqui, significa, também, vê-la, ou melhor, “lê-la” exclusivamente nos rostos dos conquistadores, na transformação que a lógica do ouro opera em suas expressões, conformando os afetos. Com efeito, fundada no texto e na performance de três atores-cantores (Mafalda de Lemos, Moritz Eggert e Christian Kesten), a montagem não constitui personagens nem representação, mas, antes, institui um dispositivo audiovisual no qual os performers são os operadores de um acting out que reativa a carta com todas as suas implicações. Por que dois homens e uma mulher? “Porque TILT é uma peça sobre a violação” – responde Roland Quitt. Não por acaso, a figura feminina será assimilada à Guiana, violada pelos dois homens e, finalmente, subjugada.
(…)
À complexidade da dramaturgia e da mise-en-scène de TILT, à eficiente cenografia e figurinos minimalistas de Nora Scheidl, vem se somar a música, que assume ao mesmo tempo a função de trilha sonora e de composição operística. Para tanto, Klaus Schedl, o criador do grupo piano possibile, concebeu uma peça que se afasta radicalmente do modo clássico de compor. Nesse sentido, vale a pena reproduzir aqui suas palavras, apresentando a criação:
“A ideia central de minha composição TILT, que perfaz a primeira parte do espetáculo, é a destruição. A destruição e o mecanismo que a ela chega inevitavelmente – uma espiral de tomada de posse e apropriação de terras, crença incondicional no progresso e superioridade. Ela vale para o desmatamento atual da Amazônia, assim como para todas as outras destruições da natureza, dos homens e de ideias. Assim, em primeiro lugar, represento musicalmente a sujeira e a voragem do progresso. Uma voragem que deve ser sentida também fisicamente pelo corpo, através da música.”[4]
[4] Klaus Schedl. “TILT”. In Amazonas. op. cit. p. 34. Amazônia. op. cit. p. 29.
Com efeito, temos aqui a primeira singularidade da música de TILT: o fato de ter de ser sentida pelo corpo do espectador, ao mesmo tempo em que é ouvida. E como o seu tema central é a destruição, de saída ela será sentida agressivamente, deslocando a passividade dos corpos, fazendo-os estremecer. Para tanto, Klaus Schedl inventou um método de composição que não cria os sons destrutivos, mas, antes, se apropria de uma enorme variedade de sons já existentes que são escaneados e reconfigurados numa arquitetura que lhes conferirá um sentido novo, sem, no entanto, ocasionar uma perda de seu sentido original; muito ao contrário, ampliando fortemente a sua potência.
(…)
Também não pode deixar de ser mencionada a execução impecável do piano possibile, regido por Heinz Friedl, que, junto com as gravações eletrônicas, completam a música de TILT.
Finalmente, cabe registrar a inteligência da direção de Michael Scheidl, bem como a qualidade do desempenho de Mafalda de Lemos, Moritz Eggert e Christian Kesten. Cada um destes extrai de sua performance o máximo de força e sutileza, explorando com precisão a modulação dos afetos do homem branco e imprimindo, num crescendo, a fúria própria dos civilizados, à medida em que a lógica da conquista se aproxima do paroxismo.
***
TILT é um olhar à distância, lançado sobre a ocupação da Amazônia pelo homem branco. A Queda do Céu introduz uma nova perspectiva, o olhar de perto e de dentro. Com música e sample de Tato Taborda, texto de Roland Quitt, concepção de Tato Taborda e Roland Quitt, direção de Michael Scheidl, cenografia e figurinos de Nora Scheidl e dramaturgia de Roland Quitt, a Segunda Parte contou com o acompanhamento intensivo do antropólogo Bruce Albert, cujo livro La chute du ciel forneceu referências para a peça, como também diversos elementos da ação.
Como agora se tratava de olhar de perto e de dentro, o espaço operístico se transforma. Um longo retângulo de 50 metros de comprimento, coberto de terra vermelha para evocar o chão de uma maloca, figura a cena. Instalado nas duas arquibancadas que a margeiam, o público está mergulhado na escuridão. Constituída, como foi dito, por dois momentos, a Segunda Parte se inicia com a conversa de um xamã, um xapiri tëpë, com seus espíritos auxiliares, xapiri pë. De todos, só ouvimos as vozes, próximas, na intimidade do escuro, acompanhadas por sutilíssimos sons que evocam a floresta à noite.
Fortemente inspirado na vivência pessoal de Roland Quitt em Watoriki, em suas conversas com os Yanomami mais velhos sobre sua experiência com missionários, cientistas e garimpeiros, e no diálogo com Davi Kopenawa sobre os políticos, bem como nas publicações da seita evangélica New Tribes Mission, no livro Folk Literature of the Yanomami Indians e nos manuscritos do livro de Bruce Albert e Davi Kopenawa, La chute du ciel [5], o texto, intitulado A Morte do Xamã [6], oferece ao espectador uma espécie de síntese poética da cosmologia Yanomami.
[5] Bruce Albert et Davi Kopenawa. La chute du ciel. Collection Terre Humaine. Plon, Paris, 2010.
[6] Roland Quitt. A morte do xamã. Trad. do Goethe-Institut São Paulo. Disponível in SANTOS, Laymert Garcia dos. Amazônia Transcultural: xamanismo e tecnociência na ópera. Editora n-1, São Paulo, 2014.
(…)
Assim, a conversa do xamã com as vozes dos espíritos auxiliares que o habitam torna-se o eixo positivo, tanto da cultura tradicional yanomami quanto da “licença poética” que funda a perspectiva do olhar de dentro da Amazônia. A relação xapiri thëpë-xapiri pë é o fio condutor da afirmação do modo de existência da floresta e do povo como vida boa e digna. Por isso mesmo, uma vez rompida, calam-se os espíritos, definham os xamãs, desorganiza-se a sociedade, agoniza a natureza, instaura-se o caos. Mas a conversa não gira apenas em torno do eixo positivo, pois desde o início a ele se contrapõe a um eixo negativo, que polariza a relação Xamã-Xawara. No universo mítico yanomami, a Xawara tem hoje um papel importantíssimo e bastante complexo, como atestam os comentários de Davi Kopenawa recolhidos por Bruce Albert. Aqui, porém, interessa o entendimento que dela foi feito para a construção da ópera. Portanto, em vez de invocarmos sua descrição pelo líder indígena, por exemplo, é legítimo evocar as palavras de Roland Quitt.
“No livro escolar que eles usam em Watoriki vê-se uma imagem de Xawara. Xawara é o monstro do infecto branco. Nesta representação Xawara é azul, mas tem um rosto branco, em cujo contorno parece formar-se uma barba. Escamas vermelhas formam o pano de fundo de Xawara, facilmente se reconhece nelas um fogo. Com o metal – com facões e outros produtos industriais – vieram para Watoriki as epidemias. Xawara é a epidemia, a morte coletiva, o suplemento fumegante e canibal do metal negociado pelos brancos. Os brancos, diz-se em Watoriki, seriam apaixonados por Xawara, são apaixonados por seus produtos de consumo, que no final só trazem a morte, falta de vida. Xawara mora nesses produtos de consumo. Estes roubam dos brancos a razão, muito na forma como um yanomami conhece do amor por mulheres. Xawara, a destruição de sua cultura, hoje está por toda parte.” [7]
[7] Roland Quitt. “A Queda do Céu”. In Amazonas. op. cit. p. 29. In Amazônia. op. cit. p.41.
(…) Ao leitor arguto, com certeza não terá escapado que, em termos yanomami, a Xawara é a concreção da lógica do ouro, que foi intensamente tratada em TILT. Até porque os conhecedores desse povo sabem que a palavra Xawara pode ser traduzida como “fumaça do metal”, como aquilo que emana do ouro e se espalha malignamente pela floresta quando o garimpeiro o arranca do chão. Nesse sentido, Xawara é a figuração da epidemia, mas também o efeito colateral da atração branca pela riqueza e pela mercadoria.
No desdobrar da conversa entre o Xamã e os xapiri pë vão surgindo os agentes propagadores da Xawara, seus servos e adoradores, que adentram a floresta e o território yanomami. Primeiro chegam os missionários evangélicos, com sua pregação e seu desígnio de conversão dos nativos. Para eles, importa acima de tudo desqualificar o xamanismo, romper o elo xapiri thëpë-xapiri pë, calar as vozes dos espíritos, substituí-las pela palavra de Teosi, introduzir o pecado, a culpa e a danação. Vinda de fora, trazida pelos brancos, a Xawara precisa, então, ser vivida por dentro, transmutada em punição, castigo divino. Trata-se, portanto, de uma destituição, pela conquista, e de uma transformação de homens livres em almas submissas.
No rastro dos missionários, caminha “o povo do saber”, isto é cientistas, pesquisadores, os brancos que vêm “iluminar” a floresta, desvendar seus segredos, recolher amostras, examinar e interpretar tudo na chave de seus conhecimentos. Eles chegam com seus pássaros de metal, suas máquinas, seus instrumentos de precisão, seu material de coleta e, sobretudo, suas técnicas para registrar todo o saber “sobre peles”, através da escrita. Eles são “os habitantes da floresta pensante” que procuram pela ordem dela, que quebram zelosamente o todo em partes, que classificam, catalogam o grande e o pequeno. Agora, a desqualificação opera através do modo de conhecer, da despossessão da memória inscrita no corpo, do descarte da oralidade, da desconsideração da experiência direta e intuitiva, do descaso com a linguagem do sonho. Aqui, a Xawara se manifesta como coleta insidiosa do patrimônio genético dos índios através das amostras de sangue e pele que serão levadas para laboratórios em terras distantes. Clonadas e perenizadas pela biotecnologia, elas permanecem fora do alcance, impossibilitando, dessa forma, que se cumpra o costume yanomami de fazer desaparecer todos os traços daquele que morre, criando uma aflição indescritivelmente cruel nos atingidos e seus parentes e descendentes. Neste caso, a Xawara, se expressa como essa perversa impossibilidade de nunca se poder completar o ritual que confere paz aos mortos.
Finalmente, chegam os garimpeiros, destruindo as matas, envenenando os rios com mercúrio, corrompendo pessoas, tirando o ouro de onde ele nunca deveria ter saído. Estes são os agentes mais diretos da Xawara, e nem seria preciso se estender sobre eles, tal a evidência de seu malefício, se não representassem o braço armado de todos aqueles que esquadrinham a terra visando transformar a sua riqueza vital em “recursos”. Nessa visada, os garimpeiros são os prepostos dos empreendedores e dos políticos, enquanto “povo do desenvolvimento”.
(…)
Toda a tensão entre os eixos positivo e negativo desemboca na visão do fim, que os xapiri pë, antes de emudecerem, descortinam aos olhos agonizantes do Xamã. É quando grandes caixas, situadas nos limites do espaço cênico começam a expelir a fumaça, que vai tomando conta da cena. A Xawara (Phil Minton) acende um charuto, o Xamã (Christian Zehnder) se levanta, a percussão irrompe forte, seguida de metais e silvos. Nesse instante, do alto se abatem sobre o palco, feito morcegos, telas negras, transparentes, desencontradas, seccionando o espaço e transformando-o num labirinto. O público, aos poucos, vai percebendo que deve abandonar a arquibancada e penetrar no emaranhado dessa floresta tropical. Tem início o segundo momento de A Queda do Céu.
Se a palavra era o detonador do espetáculo em TILT e no primeiro momento de A Queda do Céu, agora é o som propriamente dito que o impulsiona. Por isso mesmo, antes de tratarmos da mise-en-scène, convém abordarmos o trabalho do compositor.
Em seu texto “Sobre conceito e música de A Queda do Céu”, Tato Taborda escreve, apresentando sua criação:
“Logo a partir da primeira visita a Watoriki, ficou evidente o papel da escuta como veículo cognitivo primordial, ao contrário da supervalorização da visão em um contexto urbano, como o das grandes cidades brasileiras. Dois aspectos saltam aos olhos e ouvidos quando se entra na floresta na companhia dos Yanomami. Primeiro, a constatação de que, naquele ambiente, a visão é totalmente decepcionante como fonte cognitiva. Para qualquer direção que se olhe, com a perspectiva limitada pelo denso emaranhado vegetal, todas as paisagens parecem a mesma, ou variações quase imperceptíveis (para nós…) dela. A audição, ao contrário, nos permite mapear o entorno de forma bastante precisa, o que em certos casos pode ser vital. Como dizem os Yanomami, quando você vê a onça, já é tarde demais… O segundo impacto é o da percepção de que, em um ambiente altamente preservado como aquele, as espécies que por ali transitam e se comunicam desenvolveram um sentido de auto-orquestração de grande complexidade e sofisticação, onde cada indivíduo e espécie pode emitir seu sinal sonoro de forma desobstruída, ocupando posições nos eixos do tempo, frequência e espaço que não se superpõem aos demais, assegurando que cada um possa passar sua mensagem, como acontece em uma divisão de naipes em uma orquestra ou nas estratégias que asseguram discernimento às diferentes vozes no contraponto (…).”[8]
[8] Tato Taborda. “Sobre conceito e música de A Queda do Céu”. In Amazônia. op. cit. p. 36-37.
A longa citação das observações de Tato Taborda tem sua razão de ser. Pois é da descoberta dos sons da floresta e do lugar que o som humano nela pode ocupar que sua música vai derivar. Trata-se de trabalhar os sons da floresta e dos índios, não reproduzindo-os de modo imitativo, nem buscando ilustrá-los ou representá-los, mas tentando recriá-los para encontrar sonoridades que correspondam a suas diferenças específicas, intrínsecas. Assim, por um lado, o compositor traduz o som da floresta através de seis instrumentos de sopro (dois trompetes, duas trompas, um trombone e uma tuba), vários instrumentos de percussão e doze flautas de diferentes registros – feitas de diversos materiais, especialmente para a ópera, seguindo os padrões das flautas yanomami “Purunuma usi”, que reproduz a lógica sonora natural. Tal formação, executada pelo Ensemble Moderno de Lisboa, sob a regência de Heinz Friedl, levava a transposição da experiência sonora da floresta até o público, através da construção de uma ampla arquitetura que compreendia uma rede de 24 alto-falantes, distribuídos por todo o espaço, de tal modo que os espectadores se sentissem envolvidos, como se estivessem na mata. (…) Quando, numa entrevista, Verena Hütter pergunta a Tato se a música yanomami inspirou sua composição, ele responde: “Não foi a música deles que me inspirou, mas o som das vozes dos xamãs que emerge de suas gargantas poderosas. O som é um elemento chave da cultura yanomami.”[9]
[9] http://www.goethe.de/ins/pt/lis/prj/ama/mag/mus/en5816000.htm
São esses dois pilares – o som como arquitetura ambiental e as vozes dos xamãs – que dão sustentação à música de A Queda do Céu. Por isso, a voz do Xamã vai se afirmando, se destacando do silvo dos ventos, enquanto projeções luminosas de imagens digitalizadas da floresta percorrem as telas, acima das cabeças dos espectadores. Mas logo a ela vem se contrapor o sermão das New Tribes, os cânticos evangélicos, os sons de motores. O Xamã reage, e a Xawara começa a se manifestar. Como no primeiro momento da peça, arma-se novamente a tensão entre o positivo e o negativo, que vai se intensificar até a vitória da “fumaça do metal”. Os dois polos antagônicos se situam nos extremos opostos do imenso retângulo, tendo a floresta entre eles. Por ela vagam os espectadores. A eles vêm se mesclar as três incorporações humanas da Xawara – o missionário-falcão (o tenor João Cipriano Martins), a cientista-formiga (a soprano Katia Guedes) e o político-furão-papa-mel (o barítono Nuno Dias), dispostos a ocupar a selva.
(…)
A concepção, dramaturgia e direção de A Queda do Céu buscam ordenar o desenrolar do espetáculo em três planos simultâneos de significação. Por um lado, trata-se de uma metáfora da floresta tropical, por outro, de uma tela multifacetada onde se materializam as visões, sonhos e profecias do Xamã, em cujo canto reverbera sua própria voz, a voz da floresta e a dos xapiri pë; finalmente, é ambição de Tato que o campo de forças seja também percebido como a representação da própria estrutura cerebral do Xamã. Para tanto, a percepção do público é solicitada para uma experiência que se torna audiovisual, pois o que se desenvolve na evolução musical da peça está sincronizado com as projeções que percorrem as telas e com as ações que transcorrem no chão.
Criadas pelos artistas multimídia Leandro Lima e Gisela Motta, as projeções de vídeo buscam traduzir, em imagens, os três planos de significação. São imagens vívidas da floresta tropical, trabalhadas digitalmente de modo a exibir a movimentação dos xapiri pë que atravessam o espaço como pontos de luz, em sintonia com a modulação do canto do Xamã. Como se da performance deste emanasse um sopro vital da floresta, que espalha por toda parte claridade, frescor, potência e leveza; mas, por outro lado, como se esse acontecimento fosse, também, a imaginação em ato do exercício do xamanismo e a configuração abstrata da rede de sinapses que vai se conformando e se transformando no cérebro do Xamã ao longo da peça. Ora, se este espalha luz e cor, a Xawara, em sua negatividade, dissemina sombra. Quando ela canta, e à medida em que ganha força durante o combate, sua voz adquire a potência de apagar a luminosidade da floresta, de fazer proliferar a destruição, como se a positividade das imagens fosse corroída pela negatividade de um ácido, que vai tomando conta de tudo. Desse modo, se quisesse, o espectador poderia ignorar o que se passava no chão da floresta e acompanhar o duelo unicamente através do que ouvia e do que via acontecer nas telas.
Finalmente, há o que se passa no chão da floresta, em meio ao público. Portando máscaras que quase imperceptivelmente evocam o duplo animal de cada uma das figurações humanas da Xawara, o missionário-falcão, a cientista-formiga e o político-furão-papa-mel entram em cena arrastando grandes caixas. Mas a bagagem que trazem para dentro da floresta está, na verdade, cheia de discursos. Assim, da caixa do missionário-falcão brotam sermões e hinos evangélicos, sons de órgão, propaganda das Novas Tribos, todos sons voltados para a salvação das almas dos índios; da caixa da cientista-formiga saem palestras sobre recursos genéticos e os benefícios da ciência em prol da humanidade; e, da do político-furão, pronunciamentos sobre o caráter imperioso do planejamento e ocupação da Amazônia. Tais citações se inscrevem na modulação do conflito entre o Xamã e a Xawara, fazendo a balança pender progressivamente em favor desta última. (…) Por sua vez, o universo sonoro do Xamã é reforçado pela fala de Davi Kopenawa em yanomami, bem como por um belo fragmento de canto dos xamãs de Watoriki mesclado ao som de uma tempestade tropical, por nós presenciada durante uma visita à aldeia.
(…)
Prefigurando a profecia yanomami da queda do céu, o olhar de dentro culmina numa espécie de apocalipse.
(…)
A Queda do Céu procura encenar o recado dos xamãs e fazer perceber que a perspectiva mítica, mágica, precisa ser ouvida. A questão será retomada na Terceira Parte.
***
A Terceira Parte que, como vimos, se intitulava Conferência Amazônia – Na expectativa da aptidão de um método racional para a solução do problema climático, materializa o olhar para o futuro, com concepção, texto e encenação de Peter Weibel, música de Ludger Brümmer, imagem de Bernd Lintermann, direção de projeto de Christiane Riedel e dramaturgia e coordenação de projeto de Julia Gerlach.
Antes, porém, de entrarmos na questão da criação da Terceira Parte, é preciso atentar para alguns pontos preliminares. Cabe sublinhar que o conceito geral e o projeto de encenação de Weibel levaram plenamente em consideração: 1) as discussões que informaram a ópera desde o início; 2) os principais tópicos levantados como o “material” de uma ópera focalizando a Amazônia (a floresta como o herói; a conferência como a instância em que se processaria a relação entre a floresta e a tecnociência); 3) e o propósito de que a Terceira Parte assumisse a encenação da perspectiva tecnocientífica. Assim, em meu entender, não seria exagero dizer que, entre os criadores envolvidos na obra, Weibel foi o que mais problematizou a moldura conceitual do projeto, como também o que mais intensamente trabalhou a relação entre as Três Partes.
Com efeito, o artista e diretor do ZKM, teórico da artemídia, não pensava Amazônia como ópera contemporânea, no sentido convencional ou estabelecido do termo. Em sua visão, a obra era uma oportunidade para explorar radicalmente os potenciais que as tecnologias da informação e o conhecimento tecnocientífico abriam para a renovação do que costumamos entender por ópera ou, se preferirem, teatro música. Por isso, Weibel abre a sua apresentação da Terceira Parte escrevendo:
“A ópera é sempre, desde que nasceu, uma arte multimídia – a ligação entre imagem e movimento, teatro e música. Queremos atualizar essa tradição da ópera por meios contemporâneos, para estar ao nível do tempo. Quando dispomos de novas mídias audiovisuais, que possibilitam as novas conexões entre imagem, música e fala, devemos aproveitá-las (…). Esta é, provavelmente, a primeira ópera composta inteiramente a partir do meio do computador. Não apenas a música é composta com ajuda do computador, como também o palco e as imagens são assim produzidos e executados.”[10]
[10] Peter Weibel. “Amazonas-Konferenz. In Erwartung der Tauglichkeit einer rationalen Methode zur Lösung des Klimaproblems”. In Amazonas. op. cit. p. 37. “Conferência Amazônia. Na expectativa da aptidão de um método racional para a solução do problema climático”. In Amazônia. op. cit. p. 48.
(…)
A apresentação do conceito revela, consequentemente, que o ponto de partida é a reconfiguração da ópera, enquanto gênero e modo de expressão humano, segundo uma perspectiva tecnocientífica. Weibel já havia feito incursões nessa direção, buscando encontrar um fundamento midiático para uma ópera renovada e novas soluções cênicas. Assim como o experimento de A Queda do Céu havia sido precedido pela ópera Im Grünewald, que o artista cherokee Jimmie Durham havia realizado em Munique em 2006, bem como sua instalação Petrified Forest, na qual discutia a questão do desmatamento, Amazônia havia sido precedida por outras óperas multimídia de Weibel: Der künstliche Wille (A vontade artificial), em 1984; Stimmen aus dem innenraum (Vozes do espaço interior), em 1988; e Wagners Wahn (A loucura de Wagner), em 1995. Mas, agora, a tecnologia avançada e a proposta de exploração de uma perspectiva tecnocientífica da Amazônia permitiam ir além.
(…)
Já foi dito anteriormente que a Primeira Parte de Amazônia foi estruturada como um momento, a Segunda, como dois, a Terceira, como três. Vejamos agora como estes últimos foram pensados, através de uma citação do compositor Ludger Brümmer:
“De certa forma, o número três se oferece como elemento estrutural deste teatro música. Toda a obra Amazônia consiste de três atos (e perspectivas) e foi produzida por três compositores. O terceiro ato, realizado pelo ZKM, Conferência Amazônia, consiste, por sua vez, de três cenas, e a primeira dessas três cenas, por sua vez, de três trechos que se diferenciam fortemente em sua estrutura e harmonia. A segunda cena tem dois trechos, e a terceira cena somente um, que novamente somam três. Como mapa para a estrutura geradora visual e musical escolheu-se uma proporção de campos 3×3. Desses 9 campos, animados com as regras de autômatos celulares, são geradas todas as partes cantadas da primeira e da terceira cenas.”[11]
[11] Ludger Brümmer. “Die Musik in der Amazonas-Konferenz”. In Amazonas. op. cit. p. 40. “A música na Conferência Amazônia” In Amazônia. op. cit. p. 52.
(…)
A primeira cena, que se intitula Paraíso, tematiza os ciclos vitais da floresta amazônica. No Roteiro da Conferência Amazônia, Julia Gerlach esclarece que os ciclos centrais da vida, ciclo de CO2 e de H2O, assim como sua base na evolução molecular, são abordados em relação direta com o papel da floresta tropical na Amazônia. Assim, a primeira cena trata dos processos químicos como elementos constitutivos da vida, enfocados pelo modo como as ciências naturais analisam o complexo ecossistema através da linguagem matemática. O algoritmo do Game of Life de John Conway compõe, como imagem matemática do crescimento e desaparecimento, o referencial comum para os planos midiáticos da ópera, da cena, da música, da imagem e do texto. As regras do Game of Life são o fundamento para os ritmos e modelo, tanto da música quanto da projeção, aos quais os elementos constitutivos do texto estão subordinados.
A cena do Paraíso transcorre num cenário midiático, uma superfície tridimensional que tem a forma de uma ampla escada. O palco – escreve Bernd Lintermann – “surge da sobreposição de uma escada e um desenho do tabuleiro de xadrez: uma homenagem ao anfiteatro grego, aliado ao sistema cartesiano de coordenadas – o ‘solo frutífero’ do Game of Life. Os degraus normais da escada são randomizados no alto sistematicamente sobre a largura do palco, de dez metros, em distâncias de meio metro. O resultado é um desenho de tabuleiro de xadrez que parece irregular, mas que ascende no fundo, sobre o qual o Game of Life pode se desdobrar.”[12]
[12] Bernd Lintermann. “Zum Bild in der Amazonas-Konferenz”. In Amazonas. op.cit. p. 45. “Sobre a imagem na Conferência Amazônia”. In Amazônia. op. cit. p. 55.
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O que o público assiste, em Paraíso, é, portanto, a simulação do agenciamento da complexidade da vida na floresta amazônica a partir das cadeias informacionais elementares, até a organização de seres vivos – microorganismos, plantas, animais. Ou seja, testemunhamos a constituição de sua mega-biodiversidade, cuja importância para o planeta será tratada na segunda cena.
Com efeito, esta consiste na encenação da Conferência Amazônia. Dela participam uma cientista (Mafalda de Lemos), um político (Jochen Strodthoff), um economista (Christian Kesten) e um xamã (Moritz Eggert), bem como um coro – híbrido de coro antigo grego, de público, e de manifestantes (Katia Guedes, Phil Minton, Christian Zehnder, Nuno Dias e João Cipriano Martins). Como se vê, os personagens que havíamos visto em ação na floresta de A Queda do Céu, agora se encontram para debater o futuro da Amazônia, em função do desmatamento. Eles contracenam com a mesa multisensorial que, em vez do clássico datashow, projeta animações em grandes telas, ao fundo do palco, explicitando os seus argumentos mas também exibindo as consequências de seus discursos e intervenções sobre o território e o clima (…).
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Ao longo da conferência, sucedem-se, à mesa interativa, o xamã, o economista, o político e a cientista, contrapondo os argumentos xamânicos, econômicos, políticos e científicos e fornecendo um quadro da superposição de todas essas dimensões no complicadíssimo jogo de interesses, controvérsias e pontos de vista sobre o impacto do desenvolvimento na floresta e em seus habitantes. Convém ressaltar, porém, que, embora endossando a argumentação do xamã e, assim, repercutindo o ponto de vista desenvolvido em A Queda do Céu, Weibel não o contrapõe à cientista. Ao fundamentar o argumento científico nas análises de Philip Fearnside, ele de fato coloca a ciência como aliada dos povos indígenas; pois, apesar de todas as diferenças ontológicas e epistemológicas que separam a perspectiva mágica da perspectiva tecnocientífica, ambas vaticinam a morte próxima da floresta caso continuem prevalecendo os valores econômicos e políticos que produzem a devastação, e os economistas e políticos continuem ignorando o alerta disparado por xamãs e especialistas. O problema, porém, é o tempo – a conferência termina quando a cientista precisa reconhecer: “todos os acordos chegam tarde demais.”
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Finalmente, com a terceira cena, Entropia, a Terceira Parte, e a própria ópera, caminham para o desfecho. Como que desdobrando o diálogo de surdos que trava a conferência e a adoção de medidas efetivas que possam deter a devastação, agora se encena o colapso, que na verdade consiste na desagregação da ordem construída na cena do Paraíso. Assim como em A Queda do Céu a disseminação da Xawara derrota, com seu canto, as forças xamânicas que asseguravam a ordem da terra-floresta, e corrói, como um ácido, as suas imagens; agora, a entropia instaura a desordem quebrando a regularidade e a lógica da vida, no plano propriamente molecular. Com isso, os blocos do tabuleiro de xadrez vão sendo desconstruídos velozmente, a música e as imagens que os constituíam se desequilibram, derrapam, entram em fusão. Imensos incêndios da floresta vão tomando conta das telas enquanto, do ponto de vista musical, diluem-se as vozes isoladas em uma superfície de cluster ascendente e girando em volta de si mesma, que também se origina do madrigal (…).
Tal dissolução da separação palco/plateia é seguida, com a extinção da música da natureza, de um avanço dos cantores-atores em direção ao público. Nas telas, os últimos dizeres:
“Esperar é inútil.
É loucura continuar a esperar.
A catástrofe não chega – A catástrofe já chegou.
Dois séculos de capitalismo destruíram a riqueza de milhões de anos:
Nossos bens comuns: água, rios, ar, nuvens, chuva, florestas.
O niilismo do mercado é o verdadeiro terrorismo.”
Perfilados, os cantores-atores começam a repetir a última frase da Terceira Parte, enquanto devolvem para a plateia, a partir de “escudos-espelhos”, a imagem distorcida dela própria. Com efeito, ali estão, refletidos, os rostos pré-gravados de vários espectadores; mas como tais rostos assumem a repetição do enunciado, se tornam a imagem criminosa de uma dissidência que ousa romper o discurso dominante sobre as mudanças climáticas, com sua perspectiva apaziguadora.
Em suma, como sublinha Peter Weibel, o palco se desfaz tão apocalipticamente quanto a Amazônia, enquanto o coro passa de comentarista a ator coletivo e atuante, incorporando-se ao público, refletindo-o através desse procedimento engenhoso, para que os espectadores tenham, literal e metaforicamente, a última palavra.
“O niilismo do mercado é o verdadeiro terrorismo.” A afirmação provocadora gerou polêmica, evidentemente, tanto em Munique quanto em São Paulo. Mas essa era mesmo a intenção. Peter Weibel quer que o público de Amazônia, como parte do coletivo, rompa a passividade diante da tragédia anunciada e assuma tanto a emergência quanto a agência.
***
No dia seguinte à estreia da ópera em Munique encontrei, na melhor loja de música da cidade, dois exemplares de um CD intitulado Ancient lights and the blackcore. Ele chamou minha atenção porque gravações de xamanismo yanomami se associavam às faixas de música eletrônica dos grupos Scorn e Seefeel, e a uma fala de Timothy Leary mixada pelo DJ Cheb I Sabbah. O CD havia sido lançado em 1995, em Bruxelas, pela Sub Rosa Production.
Curioso, abri o folheto que o acompanhava, e lá estava um texto de David Toop, o autor das gravações, datado de 1992. Seu título me espantou: Electric dreams: shamanism, music & intoxication – Technicians of the subworld. Estava lá, já estabelecida, a relação entre xamanismo e música eletrônica; mas não só isso: o autor concebia os xamãs como técnicos do mundo subterrâneo! As ressonâncias com o cerne de Amazônia eram flagrantes.
Comprei, evidentemente, o CD. Este apresenta quatro faixas de música eletrônica, a faixa dos xamãs e, enfim, Why are you here?, com o discurso de Leary. Tal encadeamento tem o propósito de oferecer ao ouvinte primeiro a experiência da música eletrônica, em seguida a audição do xamanismo e, por fim, a fala do papa do psicodélico discorrendo sobre a ampliação da consciência e a necessidade dela para um entendimento do lugar do humano no cosmos. Ou seja: música, xamanismo & intoxicação. Para mim, tal aproximação não consistia propriamente numa novidade, pois desde os primeiros anos da década de 2000 acompanhava de perto as pesquisas de Pedro Peixoto Ferreira que resultaram na brilhante tese de doutorado intitulada Música eletrônica e xamanismo: técnicas contemporâneas do êxtase.[13] Nesse trabalho, fundado em extensa bibliografia antropológica e numa elaborada teorização sobre a música eletrônica de pista, eram exploradas as relações entre o xamanismo e a música eletrônica do ponto de vista da tecnicidade. Assim, a aproximação efetuada por David Toop interessava por sua precedência, mas também, e principalmente, porque tinha como ponto de partida não o xamanismo em geral, mas especificamente o xamanismo yanomami.
[13] Cf. Pedro P. Ferreira. Música eletrônica e xamanismo: técnicas contemporâneas do êxtase. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. IFCH-UNICAMP, 2006.
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O interesse pelas tecnologias xamânicas e a aproximação destas com as tecnologias informacionais parece se dar em virtude da percepção de que ambas, embasadas ou aliadas à ampliação e alteração dos estados de consciência, podem abrir às portas de acesso ao que David Toop chama de submundo, mas que talvez também possamos entender como apreensão de uma dimensão virtual da realidade, uma “existência outra”. Apreensão sentida, antes de ser compreendida, apreensão não observável pelos métodos analíticos a que estamos acostumados, mas captados e “baixados” sinestesicamente. Ora, no entender de Toop, o que nos impede de reconhecer a importância desse modo de existência com o qual os xamãs lidam o tempo todo é o medo que nossa sociedade tem desse processo de produção de imagens e sons que o autor denomina “imagética transformacional”.
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Encontrar o CD Ancient lights and the blackcore me deixou feliz. Ele é muito diferente da ópera Amazônia e esta, em meu entender, leva adiante a exploração das premissas sugeridas por David Toop. Só que agora, em virtude da crise ambiental global, a problemática deixou de ser metafísica. Xamanismo, tecnociência e artemídia convergem para torná-la questão vital. E urgente!
créditos
Imagens: Moritz Büchener; Christina Zartmann
Vídeos: abertura por Rudá K. Andrade
Os demais foram editados por Rafael Alves, a partir de material do Zentrum für Kunst und Medientechnologie (ZKM).
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