[I] Os críticos de arte e comentadores da obra de Partenheimer, sejam eles europeus, chineses ou brasileiros, freqüentemente apontam para o caráter meditativo, aéreo, alegre, imaginativo, e até mesmo lírico de seus desenhos e pinturas, sem esquecer, obviamente, do enigmático equilíbrio que torna sua obra inconfundível, e do silêncio que parece habitá-la (que se pense nas séries do Diário Romano, de Carmen, de De Coloribus, de…
Desde a primeira publicação de “Hegel, Texas”, em 1993[1], Hermínio Martins tem dedicado parcela importante de seu trabalho a uma intensa reflexão de cunho epistemológico, que visa compreender a escatologia contemporânea em suas duas grandes vertentes: o “experimentum mundi tecnológico em curso” e o “experimentum humanum”, isto é o “Grande Experimento”, o “projecto do ‘Experimento-sobre-o-Homem’, pelo Homem”[2]. Tal estudo, expresso ao longo de todos esses anos em diferentes publicações, constitui uma contribuição original e interessantíssima que torna inteligíveis as articulações entre, por um lado, todo o campo que se dedica à compreensão das relações entre tecnologia e risco e, por outro lado, todo o pensamento voltado para o que costumo sintetizar na expressão “o futuro do humano”.
Construindo seu ponto de vista a partir da percepção de tais articulações, Martins nos faz ver a dimensão da armadilha tremenda que a humanidade parece ter armado para si própria, bem como a dificuldade de se escapar de uma espécie de lógica infernal que vem sendo alimentada e legitimada sistematicamente pela aliança entre uma tecnociência que não aceita limites ao seu desenvolvimento e o capital globalizado que recusa todo e qualquer tipo de óbice à expansão de sua valorização. Nesse sentido, creio não ser exagerado resumir a reflexão de Martins como aquela que procura estabelecer de que modo a dinâmica societária contemporânea parece pôr em xeque o futuro do mundo e o futuro do humano.
Vejamos, então, em rápidos traços, de que modo e em que plano Martins focaliza o experimentum mundi. Reproblematizando criticamente os postulados da sociologia do risco, explorando a distinção entre risco e incerteza e revisitando o processo através do qual as sociedades moderna e contemporânea agenciam as relações de sua economia e sua tecnologia com a natureza, o sociólogo estabelece o caráter intrinsecamente predatório do experimentum mundi. Assim, num ensaio intitulado “Catastrofismo e plenitude – Para uma sociologia das calamidades revista e ampliada”, Martins escreve:
[1] In Martins, H. (org.) Knowledge and Passion – Essays in Honour of John Rex. Londres: I.B. Tauris, 1993.
[2] Martins, H. “Aceleração, progresso e experimentum humanum”, in Martins, H. e Garcia, J.L. (org.) Dilemas da civilização tecnológica, Lisboa: Imprensa das Ciências Sociais, 2003, p. 38.
“Polanyi citou muitas vezes uma frase de Bukharin, que lhe disse numa conversa privada em Moscovo, em 1935, que na sociedade comunista não haveria qualquer demarcação substantiva legítima entre ciência e tecnologia ou mesmo entre ciência, tecnologia e economia. Ora, nenhuma defesa filosófica liberal séria foi ainda apresentada deste estado de coisas que poderíamos chamar não só de tecnociência, mas de “tecnociência-de-economia-de-mercado”(a “tecnociência da economia-de-comando” fracassou eventualmente (…)) ou “tecnociência-de-mercadorias”(…). Pois a “tecnociência-de-mercadorias” também se poderia caracterizar como um sistema de produção, não só de mercadorias, como de “desmercadorias”(as externalidades negativas que acompanham as mercadorias em todas as fases da sua produção, consumo e das suas seqüelas de “tecno-metabolismo”entre a sociedade e a biosfera), não só de gestão segura de riscos probabilísticos, mas também de produção de incertezas, pelo menos provisoriamente irredutíveis à probabilificação, não só de conhecimento incorporado mas de ignorância difusa e mesmo irredutível acerca dos impactos a longo prazo em grande escala sobre o clima e a biosfera, ou mesmo acerca dos efeitos sobre o organismo humano, devido a uma vasta gama de interacções imprevistas, sinergias negativas, latências e opacidades causais dos fluxos de produção e consumo. A tecnociência, portanto, constitui-se também como uma “tecnonesciência”, a “tecnociência-de-mercadorias”como uma “tecnonesciência-das-desmercadorias”(…).”[3]
[3] Martins, H. “Catastrofismo e plenitude – Para uma sociologia das calamidades revista e ampliada”. Episteme. Lisboa: Editorial Veja, Ano II, no. 3-4, set. 1999-fev. 2000, pp. 36-37.
Como se vê, através da expressão ‘tecnociência-de-mercadorias”, Martins não só procura captar as dinâmicas econômica e tecnocientífica como um único movimento que caracteriza o atual sistema de produção, mas também, e principalmente, concebe este último como produtor, a um só tempo, de produção e de destruição, na medida em que os “efeitos colaterais” e “externalidades negativas” vão se encontrar na origem dos riscos e das incertezas. Assim, risco e incerteza configuram-se como imanentes ao próprio processo de produção. Em que escala, porém, seria preciso avaliar este último? Na perspectiva do sociólogo, para aquilatar o que se passa, faz-se necessário ressaltar a convergência entre a cosmologia catastrofista contemporânea e certas conjecturas perturbadoras sobre as implicações escatológicas das novas tecnologias, principalmente a informática e a biotecnologia.
A “tecnociência-de-economia-de-mercado” passa, então, a ser referida ao tempo geológico, isto é à especiação e à extinção. Com a palavra, novamente, o sociólogo:
“Ora nas últimas décadas, e em especial nos últimos anos, a escala da destruição de espécies, como de ecossistemas, habitats e nichos ecológicos, rapidíssima em relação aos padrões anteriores da biohistória na época do homo sapiens, tem sido tema de muitos estudos, especulações e preocupações. Se o ponto de vista mais pessimista (…) sobre a escala da destruição biótica devida à ação humana, deliberada ou não, direta, indireta ou em termos de efeitos perversos, demográfica, tecnológica, econômica, é válido, isso justificaria a conceptualização da “Sexta Extinção” na história da vida, embora talvez não a de “o fim da evolução” biótica. Partindo da hipótese pessimista, (…) poderíamos falar nesse caso da endogenização da catástrofe (…) e da destruição acelerada em grande escala, (…) ou uma aceleração antropogênica, para a eliminação de variedades e a “desespeciação”, numa escala comparável com a das grandes extinções pré-humanas, sem falar da redução do potencial evolutivo dos que ficam (…). Em certo sentido, se a estimativa pessimista é razoavelmente fundamentada, decorreu uma “evolução da evolução”, ou pelo menos se deverá dizer que “a evolução já não é o que era” tanto pela destruição não intencional, mas já não ignorada em curso, como pela apropriação de “bio-informação” em grande escala para a bio-engenharia sem limites, a refinalização dos seres vivos (…). Isso sem falar da hipótese de o homem hoje poder dirigir a sua própria evolução biológica como espécie.”[4]
[4] Idem, p. 53.
Do ponto de vista de Martins, o experimentum mundi precisa ser pensado em termos de catástrofe, e esta, por sua vez, deve ser concebida na escala cosmológica; mas o interessante é que o sociólogo nos faz ver que, na perspectiva dos entusiastas da tecnociência, é precisamente nessa escala que emerge uma oportunidade nova. Em defesa do que Martins denomina “Princípio de Plenitude Tecnológica”, eles invocariam um “Princípio de Substitutabilidade Infinita”, agora definido em termos informacionais. Nesse sentido, se for possível assegurar a existência da informação genética, que importa a Sexta Extinção em curso, uma vez que poderemos compensá-la e até fazer a evolução avançar? Tal constatação leva o autor a afirmar que o Princípio de Plenitude Tecnológica não é compatível com o Princípio de Plenitude da Vida, que a ortogênese tecnológica já não é compatível com a ortogênese biótica, que a aceleração da aceleração tecnológica já não é compatível com a muito mais reduzida “lei de aceleração” da temporalidade biótica que de certo modo a substituiu, e que talvez tenha encerrado a época da ortogênese biótica natural.
Mas se no entender do sociólogo é isso que constitui, fundamentalmente, a catástrofe, tal perspectiva não é compartilhada por aqueles que vêem na cibernetização universal o advento de uma Nova Criação, isto é de um novo mundo e de um novo homem. Concomitantemente à globalização econômico-social, Martins detecta o paradoxo de uma “planetarização informacional dos seres” que envolve uma interconvertibilidade metodológica e um panmixia dos entes naturais sem precedentes, ao mesmo tempo em que se dá a Sexta Extinção. E é esse “estado cibernético da Natureza”, já sob controle humano, que permitiria a superação da espécie e, portanto, a passagem do experimentum mundi ao experimentum humanum.
*A “cientista-formiga” recolhe a informação da floresta. Amazônia – Teatro Música em três Partes.
Pensando, portanto, a dimensão catastrófica do experimentum mundi na escala cosmológica, Martins descobre a incompatibilidade entre o Princípio de Plenitude Tecnológica e o Princípio de Plenitude da Vida. Ora, é muito instigante perceber que compatibilidade e/ou incompatibilidade entre ortogênese tecnológica e ortogênese biótica constitui o ponto de partida e até mesmo o cerne de Our Final Hour, o livro que Sir Martin Rees publicou em 2003, e no qual o professor de Cambridge e astrofisico inglês se pergunta se a humanidade sobreviverá ao século XXI. Como desta vez o alerta não é soado por um pensador apocalíptico nem por um especialista das Ciências Humanas, mas por um cientista e homem do establishment, vale a pena ouvir seus argumentos, para constatar em que termos a questão pode e está sendo colocada dentro da ciência, e que soluções são aventadas frente a possibilidade de riscos de uma catástrofe planetária. Mas não só isso: a leitura da argumentação de Rees torna ainda mais evidente, acentuada e, de certo modo, fantástica, a aporia apontada por Martins no âmago do experimentum mundi.
Com efeito, logo no prólogo de seu livro, Rees formula a questão: “Como saberemos distinguir as múltiplas possibilidades proporcionadas pela genética, a robótica e a nanotecnologia e a possibilidade dos riscos – ainda que menores – de catástrofe planetária?”[5] A pergunta do astrofísico ecoa a preocupação do grande especialista em informática Bill Joy, que escrevera um texto instingante intitulado “Why the future doesn’t need us”, no qual se assustava com a perspectiva dessas três grandes linhagens tecnológicas atingirem ao mesmo tempo o estágio de auto-replicação no horizonte de 2030[6]. Mas ao incorporar tal preocupação a partir do ponto de vista de um cosmólogo, Rees lhe deu uma outra dimensão. “Na verdade, escreve o autor, essa perspectiva cósmica reforça as preocupações dos astrofísicos quanto ao que se passa aqui e agora, pois ela dá uma idéia do prodigioso potencial da vida. Nossa biosfera levou mais de quatro bilhões de anos para se constituir durante várias fases de seleção darwiniana infinitamente longas, e esse passado imemorial doravante faz parte de nosso patrimônio. Mas o futuro poderia durar ainda mais tempo, e durante essa eternidade por vir, a diversidade da vida na terra e alhures poderia se revelar ainda mais espantosa. Em termos cósmicos, a evolução da inteligência humana e a complexidade do ser vivo poderiam estar apenas começando.”[7]
[5] Idem p. 15.
[6] Joy, B. “Why the Future Doesn’t Need Us”. Wired Magazine. April 2000 issue.
Para uma análise de sua perspectiva, em confronto com outras, cf. “Tecnologia e seleção”, in Garcia dos Santos, L. Politizar as novas tecnologias. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 271 e ss.
[7] Ibidem p.16.
Ocorre que apesar de reconhecermos tal possibilidade, e termos até mesmo os meios para começar a pensá-la, não há motivos para júbilo… porque, no entender de Rees, os riscos são agora muito grandes, em virtude da própria aceleração tecnológica, da proliferação das novas tecnologias digitais e genéticas, da vulnerabilidade dos sistemas ecológicos e sociais e do potencial maligno que as ações de indivíduos ou grupos terroristas têm e terão cada vez mais condições de acionar, com a “democratização” das armas nucleares, biológicas, informacionais e nanotecnológicas. Por isso, Rees observa: “Talvez não seja absurdo afirmar que o espaço-tempo crucial – excetuando-se o Big-Bang – se dá aqui e agora. Com efeito, penso que as chances de sobrevivência dos humanos na Terra daqui até o fim do século não ultrapassam cinqüenta por cento. Só nossas opções e nossas condutas permitirão assegurar a perenidade da vida futura sobre a Terra e talvez para-além dela ou, pelo contrário, ameaçarão o potencial de vida e depois provocarão o fim do futuro humano e pós-humano. Portanto, o que vai acontecer aqui na Terra durante o século poderia fazer toda a diferença entre duas quase-eternidades: uma rica de formas de vida cada vez mais complexas, a outra constituída apenas de matéria.”[8]
Por que Rees é tão pessimista, e o que lhe permite avançar a cifra de 50%, ao avaliar as chances de sobrevivência da humanidade no século XXI? É curioso observar que a seus olhos o futuro parece dividido ao meio – ponto de vista que compartilha, talvez sem o saber, com o escritor Elias Cannetti[9]. Mas Rees não chega à mesma conclusão a partir de sua própria reflexão, como o faz o Prêmio Nobel de Literatura. Se as chances de sobrevivência são de 50%, é porque é essa a cifra estimada pelos especialistas da Guerra Fria sobre o risco acumulado de uma catástrofe nuclear. E como o astrofísico considera que não só tal ameaça não foi completamente dissolvida, mas de certo modo foi ampliada com o advento das novas tecnologias, 50% até que parece um número razoável, comedido!
[8] Ibid. pp. 19-20.
[9] que já em agosto de 1945, no momento em que explodiu a bomba atômica em Hiroshima, escreveu em seu caderno de anotações: “Não é que não se veja nada diante de si. Mas o futuro separou-se em dois; ele será assim ou assado; de um lado todo o medo, do outro toda a esperança. Já não temos mais o peso que nos permitiria determiná-lo, nem a nós mesmos. Porvir ambíguo, cheio de duplicidade; e eis a Pítia novamente prestigiada. O sol destronado – é o último mito vivo sendo destruído. A terra tornou-se maior; abandonada a si própria, que vai fazer por ela mesma ? Até agora, ela era incontestavelmente filha do sol, dependia dele totalmente e não podia subsistir em ele, continuar com vida sem ele; sem ele, estava perdida. Mas a luz foi destronada e a bomba atômica tornou-se a medida de todas as coisas.” Canetti, E. Le territoire de l’homme. Paris: Albin Michel, 1978, p. 98. Trad. francesa de Armel Guerne.
Imagens do filme Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964), de Stanley Kubrick. No filme de nome sugestivo, diante da catástrofe nuclear o cientista aponta a positividade em poder selecionar pessoas para perpetuar, num melhor patamar, a espécie.
Ora, diante de tal perspectiva, o que fazer? Ao aventar a possibilidade cada vez maior de que indivíduos ou grupos isolados possam provocar a morte coletiva através de armas biológicas ou precipitar o mundo numa crise graças ao cybercrime, Rees se perguntara se não valeria a pena aceitar um Estado policial ou uma vigilância universal, com a concomitante redução das liberdades individuais, em troca de uma segurança que permitisse prevenir os riscos. Por outro lado, voltando-se para os cientistas, ele se indaga se não seria o caso de colocar limites na pesquisa & desenvolvimento da biotecnologia, bem como da inteligência artificial e da nanotecnologia. Mas sendo ele próprio um cientista, Rees sabe da dificuldade de suas objeções serem sequer consideradas; por isso, toda a segunda metade de seu livro será dedicada à reflexão sobre os “riscos extremos”, isto é risco de extinção da espécie, risco de fim do mundo. Tais riscos, evidentemente, são inaceitáveis. Mas, pergunta o autor, quando um risco se torna inaceitável, e quem deve decidir a respeito de uma experiência cujo risco pode se tornar extremo?
O exemplo máximo de risco extremo é o das experiências com aceleradores de partículas que, segundo alguns físicos, poderiam chegar a destruir não só a Terra como todo o universo, isto é uma catástrofe cósmica. A probabilidade de isso acontecer é muito pequena – o risco é de um em cinqüenta milhões. Mas isso o torna mais aceitável? Afinal a probabilidade é ínfima, mas não é nula, e estamos falando da morte de toda a espécie… E, além disso, há o problema do efeito cumulativo – pois se cada risco é insignificante, tomados em seu conjunto os riscos da robótica, da genética, da nanotecnologia e dos experimentos com aceleradores de partículas podem constituir uma ameaça importante. Nesse caso, podem os cientistas garantir uma segurança “cem por cento”?
Rees sabe que não, e sabe que nem por isso o rumo tomado será modificado, e muito menos revertido – apesar de todas as advertências, de todas as propostas em favor de uma regulação do progresso tecnocientífico, de todas as iniciativas no estilo Asilomar, Pugwash, etc. No entender do astrofísico, os cientistas precisam discutir seriamente o problema; e como parece impossível uma revisão do caminho tomado, cogita uma proposta, paradoxalmente sensata e louca, que parece efetivamente se constituir como uma saída. Com efeito, constatando a ausência de uma alternativa, Rees escreve: “Diante de tais ameaças, a humanidade será portanto vulnerável enquanto permanecer confinada na Terra. Quais são então as possibilidades do homem se estabelecer alhures?” [10]
[10] Ibid. p. 202.
O leitor esfrega os olhos, acha que está sonhando. A pergunta conviria perfeitamente a um personagem de uma narrativa de ficção científica, não ao livro de um cientista respeitável e respeitado; e só não provoca surpresa ainda maior porque os geneticistas entusiastas de uma promoção sem freios da tecnociência já nos acostumaram às mais alucinantes propostas. Pois o que diz Rees, senão resignar-se e propor que comecemos a trabalhar para exportar a vida para fora da Terra a fim de preservá-la, já que o projeto da tecnociência é intocável? A idéia do astrofísico recupera a questão de Manfred Clynes e Nathan Kline, os dois especialistas da Nasa que nos anos sessenta inventaram o conceito de cyborg para tentar resolver o seguinte problema: Considerando-se que o homem é um ser terrestre, como fazer para que ele viva num ambiente extraterrestre? Já que não se pode adaptar o espaço às condições vitais do humano, como adaptar o humano ao espaço?[11] Mas, na realidade, ao recuperá-la, Rees vai muitíssimo mais longe do que simplesmente alimentar a ambição da “conquista do espaço”, tão cara aos contendores da Guerra Fria. Seu pensamento não só se inscreve na lógica de um futuro pós-humano do homem, como confere um sentido novo aos argumentos que procuram legitimá-la, na medida em que destina o homem a superar o humano para preservar o patrimônio da espécie ameaçado pelo próprio homem! Assim, este assumiria uma missão cósmica e, ao fazê-lo, assumiria também a possibilidade e a responsabilidade pela própria continuidade de toda a evolução…
[11] Clynes, M. & Kline, N. “Cyborgs and Space”. Gray, Chris Hables (ed.). The Cyborg Handbook, New York & London; Routledge, 1995, p. 29.
É fantástico que, querendo convencer seus colegas da importância crucial de se levar a sério o risco de uma catástrofe planetária, querendo levá-los à prudência, um cientista acene com o interesse que haveria em preservar a vida hoje para uma missão maior no futuro. Fantástico porque, salvo engano, não creio existir resposta tão tecnocientífica à ameaça tecnológica – não há outra proposta para “resolver” a questão do risco tecnológico que aprofunde com tamanha intensidade o desenvolvimento e os propósitos da tecnociência. E aí se encontra a tremenda ambigüidade de Our Final Hour. Lendo Rees, descobrirmos que no século XXI corremos o risco de uma catástrofe planetária que pode extinguir a vida na Terra; mas, ao mesmo tempo, e por essa mesma razão, entrevemos a possibilidade de “transferirmos” para o cosmos o patrimônio formado durante os milhões de anos que a seleção natural levou para criar a espécie “superior”. Como isso se apresentaria? Com base nos conhecimentos e nas teorias hoje disponíveis, o autor especula sobre nossa vida para além da Terra. Começando pelos vôos tripulados ao espaço, passando por prováveis viagens a Marte e se aventurando mais longe. Até que o exercício de futurologia desemboca no desenho do que parece ser a verdadeira finalidade dessa “viagem”: “Dentro de algumas centenas de anos os seres suscetíveis de viver em pontos do sistema solar seriam todos, visivelmente, humanóides, com certeza complementados por robôs com inteligência humana. Entretanto, se fosse possível viajar para além do sistema solar via espaço inter-estelar, isso constituiria um desafio para o humano. Num primeiro momento através de sondas robotizadas, tais viagens seriam feitas por várias gerações de humanos. O material genético, ou os blue prints telecarregados em memórias inorgânicas, poderiam também ser lançados no cosmos por meio de uma nave miniaturizada. Programados para poder aterrissar em planetas viáveis e fazer cópias de si mesmos, eles começariam assim a se disseminar em toda a Galáxia. Além dos problemas dos limites da estocagem de informações que isso implica hoje, também estamos diante do questionamento filosófico quanto à nossa identidade. Essa fase da evolução humana constituiria um acontecimento histórico semelhante àquela que desembocou na vida sobre a Terra, mas talvez ela não passe de um primeiro passo rumo a uma evolução cósmica.”[12]
[12] Ibid. p. 212.
Rees pensa que esse “imenso potencial pós-humano” corre o risco de ser aniquilado por nós. É da maior importância perceber que o saber que o põe em risco é o mesmo que funda a possibilidade de desenvolvê-lo, e que isso, aparentemente, não coloca a menor sombra de dúvida sobre a existência de uma contradição, como se o Princípio de Plenitude da Vida pudesse ser compatibilizado com o Princípio de Plenitude Tecnológica sob a égide e a máxima concretização deste último. E, ao mesmo tempo, como se uma espécie de esquizofrenia separasse na mente do cientista o pensamento científico do pensamento do risco.
Captura de “Out of the present” (1999) de Andrei Ujica
* * *
Assim como Martins, Rees também parece vincular o experimentum humanum ao experimentum mundi, muito embora o faça apenas implicitamente, ao contrário do sociólogo, que vê na correspondência, na complementaridade e na convergência do futuro do mundo e do futuro do humano uma questão crítica. Do mesmo modo, se para o cosmólogo a abertura de um futuro pós-humano parece não suscitar grandes inquietações, chegando a se configurar quase que “inevitavelmente”, para Martins tal passagem não só não pode ser considerada como “dada”, mas precisa ser analisada e discutida até às últimas conseqüências, pela radicalidade dos problemas que coloca, do ponto de vista ontológico e epistemológico.
A problemática é tratada em “Aceleração, progresso e experimentum humanum.” Aqui, avaliando os três tipos de estudos que vêm sendo realizados sobre a temática da aceleração na civilização tecnológica, Martins identifica – além dos que privilegiam a vivência do tempo acelerado e dos que preconizam o crescimento exponencial do conhecimento tecnocientífico e do progresso tecno-econômico para superar os impasses da crise ambiental – os textos da “elite de digerati”, que preconizam uma mutação inédita, “que se poderia denominar ontológica (ou des-ontológica)”, para um futuro pós-humano, pós-biológico, expresso pelo termo “Singularidade”. Como escreve o sociólogo: “A escola da aceleração-para-a-Singularidade, do aceleracionismo escatológico (alguns deles chamam-se a si próprios Singularitarians) pelo menos dá um sentido de transcendência potencial e uma direção privilegiada bem definida para os processos tecno-econômicos em curso, e de toda a História, mas mais que um significado histórico-mundial, uma viragem para uma nova civilização, um sentido ainda mais profundo, ontúrgico e cosmogônico, um salto para um novo modo de existência.”[13]
Martins considera que os entusiastas da tecnociência das duas primeiras categorias de estudos ainda não perceberam que os mesmíssimos processos que asseguram o bem estar material e a superação das crises ambientais a nível planetário tornam possível e inevitável, segundo a escola Singularista, a passagem do humano para o pós-humano. Mais ainda: tal dilema não se colocaria apenas para os “Panglossianos”, mas para todos, “absolutamente todos, antropocêntricos ingênuos”.[14] Ora, em que consiste essa aceleração para a Singularidade?
[13] Martins, H. “Aceleração, progresso e experimentum humanum”, in Martins, H. e Garcia, J.L. (org.) Dilemas da civilização tecnológica, Lisboa: Imprensa das Ciências Sociais, 2003, p. 7.
[14] Idem, p. 8.
Como lembra Martins, J. Von Neumann teria cunhado o termo “Singularidade” nos anos 50, para designar uma mutação absolutamente extraordinária; mais tarde cientistas, entusiastas da tecnociência e autores de ficção científica dele se apropriaram para nomear a passagem para o pós-humano ou trans-humano. “Hoje, escreve o sociólogo, o projeto trans-humanista está essencialmente vinculado aos avanços da tecnologia computacional do ponto de vista prático, à extensão das ciências ciberneticizadas da vida, da mente (…) e do cérebro, e à permeação do nosso modo de pensar por uma metafísica informacionista do ponto de vista teorético. No entanto, o essencial da visão trans-humanista, no mínimo a perspectivação do sucessor legítimo do homo sapiens como sumidade cognitiva, cujo veículo seria um ente pósbiótico, realizado através de uma auto-evolução, por uma série de transformações endosomáticas ou endopsíquicas, aproveitando a tecnociência disponível a cada momento, foi formulado antes do grande surto das máquinas inteligentes depois de 1945, e mesmo sem a antecipação clara desta linhagem tecnológica.”[15] É que Martins identifica no ensaio de John D. Bernal, The world, the flesh and the devil – Three enemies of the rational soul, publicado em 1929, a matriz do pensamento da Singularidade:
[15] Idem, p. 29.
“a perspectiva era da constituição de que se poderiam chamar hoje ciborgs epistêmicos, e em particular para tornar os humanos mais aptos para as viagens espaciais.” “A motivação essencial parece ter sido a necessidade de pensar a melhor maneira de superar os limites do progresso do conhecimento científico que decorrem das nossas características contingentes de meros primatas inteligentes, das nossas ‘formas de intuição sensorial’, da nossa Umwelt e Wirkwelt, como diria um autor coevo, o biólogo neo-kantiano J.V. Uexkül.”[16]
[16] Idem, p. 29.
Como bem observa Martins, tratava-se, portanto, de um projeto de superação dos limites do humano com vistas a realizar a “Tarefa Comum”, entendida como a maximização do conhecimento tecnocientífico como fim último e exclusivo. Mas se a intenção foi mantida e alimentada ao longo de todo o século XX, o foco, todavia, teria mudado (mas não a ponto de ser esquecido, como mostra o livro de Martin Rees). Hoje a ênfase teria se deslocado das viagens espaciais e do cosmos para os microcosmos, centrando-se na mente e no indivíduo, entendidos sob a ótica das tecnologias da informação. É por aí que se acredita ser possível operar a Singularidade.
Há muita discussão sobre o caráter utópico ou realista dessa empreitada que mais parece literatura de ficção científica, e chovem argumentos dos dois lados. De todo modo, Martins leva a sério um punhado de tendências efetivas do avanço da tecnociência, que não mais permitem desconsiderar a hipótese de superação do humano do horizonte. Não cabe aqui recenseá-las. No entanto, como observa o sociólogo, as inovações da engenharia genética colocam, ou individualmente, ou no seu conjunto, uma “Grande Questão”: “A nova Questão, que poderia ter definido também uma época, mas já será tarde demais para isso, seria a Questão do Homem, da antropodicéia, da apologia do humano, ou pelo menos do seu epitáfio e do seu testamento.”[17]
[17] “Aceleração…”, op. cit. p. 36.
Metropolis (1927) de Fritz Lang. As características físicas de Maria são passadas ao ser artificial.
O sociólogo acrescenta que, no caso, a Questão do Homem não vem a ser propriamente a elaboração de uma nova resposta para a pergunta “O que é o Homem?”, nem mesmo a tentativa de se considerar o Homem-como-Experimento, isto é como ser lançado numa grande aventura:
“Mais propriamente, poderíamos dizer que surgiu o projecto do “Experimento-sobre-o-Homem”, pelo Homem, sobre o seu próprio ser ou natureza (…), que ocupa enfim um lugar cada vez mais saliente na agenda tecnológica, especialmente no projecto tecno-cibernético trans-humanista. (…) Estamos a falar do Grande Experimento (…) de passarmos da modalidade biológica à existência puramente virtual, de nos transformarmos em entia virtualissima.”[18] “(…) o que eles desprezam é, no seu glossário oficial, o ‘chauvinismo biológico’, o ‘fundamentalismo biológico’, a idéia de que ser vivo, no sentido primário da Vida-B (a vida biológica), e não o da Vida Artificial ou Vida-A, representa por si só algum privilégio ontológico.”[19]
[18] Idem, p. 37.
[19] Ibidem, p. 38.
Ao complementar o estudo da escatologia contemporânea com sua reflexão a respeito do Experimento-sobre-o-Homem-pelo-Homem na escala cosmológica, Hermínio Martins permite perceber com clareza a existência no interior da tecnociência de dois programas distintos, que vem se desenvolvendo paralelamente: o projeto de aceleração-para-a-Singularidade e o projeto da reprogenética, ancorado na engenharia genética e genômica. O sociólogo vê o primeiro como a expressão de uma misantropia ontológica radical, porque se trata de uma vontade de superar o humano, enquanto o segundo caracterizar-se-ia por uma megalantropia, amplificação praticamente sem limites dos poderes naturais do homem.[20] Nessa perspectiva, a ambição dos biotecnólogos parece efetivamente ser mais modesta. Mas como ambos se ancoram na ciberciência e na cibertecnologia, pois têm como conceito fundante a concepção do humano como informação e põem em questão o futuro da espécie, cabe assinalar que talvez valesse a pena indagar se a biotecnologia se atém realmente a ampliar os limites dos poderes naturais do homem, ou se ela faz mais do que isso. De todo modo, é compreensível que o alarme acionado por Martins soe mais alto do que o dos críticos que habitualmente se concentram na abertura de uma segunda linha de evolução da espécie humana através do melhoramento genético – afinal de contas, a “elite dos digerati” trabalha em favor de uma transcendência radical do humano, vale dizer trabalha para o seu desaparecimento. Além disso, até onde sei, dentro das Ciências Humanas, o sociólogo é o primeiro não só a distinguir os dois programas do experimentum humanum como tendências diversas, mas também a levá-los igualmente em consideração.
O que mais espanta, porém, é que o projeto de modificação tecnológica do humano por humanos encontre tão pouca oposição. Por que, pergunta-se Martins em “Genetic Jacobinism in the Republic of Choice”, ele não desperta as ferozes reações que a “engenharia social” encontrou? É importante observar que a resposta a tal indagação vai levar o autor a Carl Schmitt e a Schumpeter que, em suas análises, conceberam a forte neutralização dos valores nos mais diferentes setores da prática social e da vida humana – o jurista alemão mostrando como o capitalismo procedeu a sucessivas neutralizações no Ocidente através da racionalidade científica e técnica, e Schumpeter compreendendo o capitalismo moderno, e não a ciência, como o principal destruidor de valores religiosos.
[20] Ibidem, p. 37.
Captura de Frankenstein (1931), dirigido por James Whale.
Assim, a explicação da pouca resistência ao experimentum humanum se elabora através do modo pelo qual a conjunção tecnociência+capitalismo corrói os valores que poderiam se contrapor à ofensiva da transformação tecnológica do humano pelo homem. Ora, tal perspectiva remete diretamente a questão do experimentum, por um lado, ao “desencantamento” do mundo e, por outro, à centralidade da economia política para o entendimento das razões que tornaram possível o advento do Jacobinismo genético na República da Escolha. E aqui se verifica uma forte e profícua ressonância entre o pensamento de Martins e o de Michel Foucault, tal como desenvolvido em Naissance de la biopolitique.
Nesse livro, pela primeira e única vez, Foucault se dedica à análise de um tema contemporâneo – o neoliberalismo –, que tem implicações profundas para o pensamento do futuro do humano. Sua reflexão permite compreender em novas bases de que modo será conferido ao mercado o poder de investir sobre a vida, e de definir como esta deve ser gerida segundo uma lógica que atenda aos imperativos do capital e da tecnociência. Assim, o que se pensa, é a passagem da política à biopolítica; mas convém salientar que a obra não trata desta, e sim da reconfiguração epistemológica que vai tornar possível o seu advento.
Examinando o que entende por “razão governamental moderna”, o filósofo encontra na economia política a matriz de uma transformação na “arte de governar” que, a partir de meados do século XVIII, instaura um princípio de auto-limitação intrínseco ao próprio exercício do poder governamental. “(…) por economia política – escreve Foucault – entende-se (…) todo método de governo suscetível de assegurar a prosperidade de uma nação. (…) a economia política é uma espécie de reflexão geral sobre a organização, a distribuição e a limitação dos poderes numa sociedade. Acho que a economia política é o que, fundamentalmente, permitiu assegurar a auto-limitação da razão governamental.”[21]
[21] Foucault, M. Naissance de la biopolitique. Coll. Hautes Etudes, Paris: Gallimar/Seuil, outubro 2004, p. 15.
A economia política se forjou, evidentemente, no âmbito da razão de Estado e se propôs o enriquecimento deste. Mas, refletindo sobre as práticas governamentais e seus efeitos, ela descobriu, por trás do exercício da governabilidade, uma natureza própria aos objetos da ação governamental que precisaria respeitar, se quisesse ser bem-sucedida. Em suma, com a economia política, a eficácia substitui a legitimidade, estabelecendo o que o filósofo denomina um regime de verdade que caracteriza “a era da política”, e cujo dispositivo fundamental continua valendo até hoje. “Com a economia política entramos portanto numa era cujo princípio poderia ser o seguinte: um governo nunca sabe se corre o risco de governar demais, ou ainda: um governo nunca sabe direito como governar só o suficiente.”[22]
[22] Idem p. 20.
Interessado em verificar porque a questão do liberalismo é a da frugalidade do governo e porque o laissez faire se torna o princípio essencial que todo governo deverá respeitar em matéria econômica, Foucault chega à conclusão que é nesse momento que o mercado se torna ao mesmo tempo o lugar e o mecanismo de formação de um novo regime de verdade. Assim, a importância da economia política não consiste em ditar ao governo a conduta certa, mas em indicar-lhe onde encontrar o princípio de verdade de sua própria prática governamental. Estavam ali, portanto, no século XVIII europeu, lançadas as bases de uma razão governamental cujos desdobramentos serão explorados, não para se fazer uma história do liberalismo, mas para poder marcar a mutação operada pelo neoliberalismo alemão e norte-americano na segunda metade do século XX. Com efeito, se Foucault mobiliza a constelação das noções da razão governamental liberal (mercado, laissez faire, eficiência, utilidade, interesse) em contraposição às noções que balizavam a razão de Estado (soberania, direito, legitimidade, etc), é porque precisa esboçar o movimento que gerou a primeira grande transformação, a fim de que possamos aquilatar o sentido e o alcance do movimento que agora, com o neoliberalismo, aprofunda e transfigura tremendamente aquela razão governamental.
Nesse sentido, a questão decisiva do neoliberalismo é saber se a economia de mercado pode servir de princípio, de forma e de modelo para o Estado, se é possível, a partir dela, uma formalização geral dos poderes do Estado e da organização da sociedade. Mas para tanto, não bastaria reativar as velhas formas do laissez faire, tornando-se necessário um remanejamento profundo na própria razão governamental que toma o mercado como regime de verdade:
“Não vai haver o jogo do mercado que é preciso deixar livre e, depois, o campo em que o Estado começa a intervir, pois, precisamente, o mercado, ou melhor a concorrência pura, que é a propria essência do mercado, só pode surgir se for produzida, e só é produzida por uma governabilidade ativa. Vai-se portanto ter uma espécie de superposição completa da política governamental com os mecanismos de mercado indexados sobre a concorrência. (…) É preciso governar para o mercado, em vez de governar por causa do mercado.”[23]
[23] Ibid. p. 125.
Com o neoliberalismo estaria então em jogo muito mais do que a simples “superação” do laissez-faire – trata-se de uma reconfiguração do Estado e da sociedade a partir do princípio maior do mercado que é a concorrência, e não tanto a troca, como nos primórdios da economia política. Em páginas penetrantes, o filósofo analisa: “Com efeito, se admitimos que estamos lidando não com o capitalismo derivando da lógica do capital, mas um capitalismo singular constituído por um conjunto economico-institucional, pois bem, é possível intervir nesse conjunto e intervir de maneira a se inventar um outro capitalismo. Não se trata de prolongar o capitalismo, mas de inventar um novo capitalismo. Mas onde e por onde vai poder se dar o surgimento da inovação dentro do capitalismo? Evidentemente, não do lado das leis de mercado, não do lado do próprio mercado, pois por definição, como mostra a teoria econômica, o mercado deve funcionar de tal modo que seus mecanismos puros sejam eles próprios reguladores do conjunto.”[24]
[24] Ibid. p. 172.
Ora, é na invenção desse novo capitalismo que a teoria do capital humano e a reconfiguração do homo oeconomicus, que é o seu corolário, aparecem como uma contribuição norte-americana que vai adquirir um papel central. Agora a mutação concerne não tanto às relações entre Estado e mercado, mas sim às novas articulações que se armam entre mercado e indivíduo, que vão trazer o homo oeconomicus para o centro da cena, em detrimento do sujeito de direito.
Segundo o filósofo, o problema dos neoliberais da Escola de Chicago, ao formularem a teoria do capital humano, era reintroduzir o trabalho no campo da análise econômica. Marx havia feito do trabalho “abstrato” uma das questões centrais de sua crítica da economia política; mas o que incomoda é precisamente o caráter abstrato que o trabalho adquiriu no discurso econômico:
“Afinal a mutação epistemológica essencial das análises neoliberais, escreve Foucault, é que elas pretendem mudar o que de fato havia constituído o objeto, o campo dos objetos, o campo de referência geral da análise econômica. Praticamente, e grosso modo, a análise econômica, de Adam Smith até o início do século XX, se atribuía como objeto o estudo dos mecanismos de produção, dos mecanismos de troca e dos fatos de consumo no interior de uma dada estrutura social, com as interferências desses três mecanismos. Ora, para os neoliberais, a análise econômica deve consistir não no estudo desses mecanismos, mas no estudo da natureza e das consequências do que eles chamam de escolhas substituíveis (…)”.[25] “O que a análise deve tentar destacar, é qual foi o cálculo, que aliás pode ser estapafúrdio, cego, insuficiente, mas qual foi o cálculo que fez com que dados os recursos raros, um indivíduo ou indivíduos decidiram alocá-los a tal fim em vez de tal outro. A economia não é mais portanto a análise de processos, é a análise de uma atividade. Não é mais portanto a análise da lógica histórica de processos, é a análise da racionalidade interna, da programação estratégica dos indivíduos.”[26]
[25] Ibid. p. 228.
[26] Ibid. p. 229.
Na base do que o filósofo considera a mutação epistemológica dos neoliberais, se encontra então aquilo que outros denominaram “análise de custo/benefício”. É assim que o trabalho é reintroduzido no campo da análise econômica: como conduta econômica assumida do ponto de vista de quem trabalha, isto é como perspectiva de um sujeito econômico ativo. Marx, em sua teoria do modo de produção capitalista abstraíra do trabalho concreto a força de trabalho, entendida como trabalho abstrato, e nessa perspectiva o salário era o preço da venda da força de trabalho. Mas para os neoliberais salário é renda, o produto ou o rendimento de um capital: “Decomposto do ponto de vista do trabalhador em termos econômicos, o trabalho comporta um capital, isto é uma aptidão, uma competência; como eles dizem: é uma “máquina”[27]. E por outro lado é uma renda, quer dizer um salário ou um conjunto de salários; como eles dizem: um fluxo de salários.”[28] A conseqüência de tal transformação do trabalhador é que se sua competência e sua aptidão são vistos como sua máquina, seu capital, que vai produzir fluxos de renda, o próprio trabalhador emerge a seus olhos e aos olhos dos outros como uma espécie de empresa. Desse modo, assim como a unidade de base da economia é a empresa, também a unidade de base da sociedade não é mais o indivíduo, mas o trabalhador-empresa.
[27] Como observa Foucault em nota, em “Investment in Human Capital”, Theodore Schultz propõe integrar as aptidões humanas inatas em “an all-inclusive concept of technology”. Cf. Foucault, M. op.cit. p. 243.
[28] Ibid. p. 230.
A reconfiguração do homo oeconomicus permitirá que os neoliberais reintroduzam o trabalho na análise econômica, estendendo-a a campos que escapavam da economia clássica. Ora, tal questão concerne diretamente ao humano, mas não só isso: concerne também ao modo como interesse econômico e interesse tecnocientífico vão convergir no sentido de uma redução do homem à dimensão econômica que permitirá conceber o seu patrimônio genético como uma riqueza passível de valorização. E aqui se faz necessário lembrar que o curso que deu origem ao Naissance de la biopolitique foi ministrado em 1979, portanto muitos anos antes da biogenética agitar a agenda das discussões contemporâneas. De certo modo, antecipando o que viria e, ao mesmo tempo, demarcando o terreno a partir do qual a bioengenharia do humano não só se torna possível como socialmente necessária e individualmente desejável, vale dizer, portanto, uma aspiração social irreprimível, Foucault permite compreender porque numa perspectiva neoliberal “não há alternativa” senão deixar que o mercado decida pela manipulação do genoma humano. Mais ainda: permite perceber que ele certamente o fará, apesar de todas as objeções dos humanistas e das salvaguardas que os especialistas em ética possam colocar.
Com efeito, analisando a composição do capital humano, o que diz o filósofo? O capital humano é composto de elementos inatos e de elementos adquiridos:
“Falemos dos elementos inatos. Há os que podemos chamar de hereditários, e outros que são simplesmente inatos. Diferenças que são óbvias, é claro, para qualquer pessoa que tem a mais vaga noção de biologia. Sobre o problema dos elementos hereditários do capital humano, não creio que existam atualmente estudos já feitos, mas vemos muito bem como eles poderiam ser feitos, e sobretudo vemos muito bem, através de algumas inquietudes, preocupações, problemas, etc, como algo está surgindo, que poderia ser, como quiserem, interessante ou inquietante.[29] Com efeito, nas análises, ia dizer clássicas, desses neoliberais, nas análises de Schultz ou nas de Becker, por exemplo, é dito explicitamente que a constituição do capital humano só tem interesse, e só se torna pertinente, para os economistas, na medida em que esse capital se constitui graças à utilização de recursos raros, e de recursos raros cujo uso seria alternativo para um dado fim. Ora, é evidente que não temos que pagar para ter o corpo que temos, ou que não temos que pagar para ter o equipamento genético que é o nosso. Isso não custa nada. Sim, não custa nada – enfim, vai saber… e imaginamos muito bem que alguma coisa como isso pode acontecer (aqui, o que faço mal chega a ser ficção cientifica, é uma espécie de problemática que está se tornando ambiente atualmente). Com efeito, a genética atual mostra que um número muito mais considerável de elementos do que se podia imaginar até hoje [é] condicionado pelo equipamento genético que recebemos de nossos antepassados. Ela permite sobretudo estabelecer, para um dado indivíduo, seja ele qual for, as probabilidades de contrair tal ou tal tipo de doença, numa certa idade, durante um dado período de sua vida, ou de um modo inteiramente qualquer a qualquer momento de sua vida. Em outras palavras, um dos interesses atuais da aplicação da genética às populações humanas, é permitir reconhecer os indivíduos de risco e o tipo de risco que os indivíduos correm ao longo de sua existência. Vocês me dirão: aí também não podemos fazer nada, nossos pais nos fizeram assim. Sim, é claro, mas a partir do momento em que se pode estabelecer quem são os indivíduos de risco, e quais são os riscos para que a união de indivíduos de risco produza um indivíduo que terá ele próprio tal ou tal característica quanto ao risco de que será portador, podemos perfeitamente imaginar o seguinte: é que os bons equipamentos genéticos – isto é [aqueles] que poderão produzir indivíduos de baixo risco ou cuja taxa de risco não será nociva para eles, para seus próximos, ou para a sociedade –, esses bons equipamentos genéticos vão certamente se tornar algo raro, e na medida em que serão algo raro, podem perfeitamente [entrar], e é normal que entrem, nos circuitos ou nos cálculos econômicos, isto é nas opções alternativas. Em termos claros, isso vai significar que, dado meu equipamento genético, se quero ter um descendente cujo equipamento genético seja pelo menos tão bom quanto o meu ou, na medida do possível, melhor, vou ter que encontrar alguém com quem me casar, alguém cujo equipamento genético também seja bom. E vocês vêem claramente como o mecanismo de produção dos indivíduos, a produção dos filhos, pode desembocar em toda uma problemática econômica e social a partir do problema da raridade de bons equipamentos genéticos. E se vocês quiserem ter um filho cujo capital humano, entendido simplesmente em termos de elementos inatos e de elementos hereditários, for elevado, verão que, da parte de vocês, vai ser preciso todo um investimento, isto é ter trabalhado o suficiente, ter renda suficiente, ter um estatuto social que lhes permitirá assumir como cônjuge ou como co-produtor desse futuro capital humano alguém cujo capital também é importante. Eu lhes digo isso, que não é de forma alguma beirando a brincadeira; é simplesmente uma forma de pensar ou uma forma de problemática que se encontra atualmente em estado de emulsão.”[30]
[29] Grifo meu.
[30] Ibid. pp. 233-234.
Imagens do documentário Homo Sapiens 1900 (1998), de Peter Cohen.
A longa citação da análise de Foucault relativa à forma como os elementos inatos e hereditários do genoma humano devem ser compreendidos nos termos da teoria do capital humano se justifica pela necessidade de mostrar por inteiro de que modo o filósofo leva absolutamente a sério um desdobramento lógico da concepção do homo oeconomicus que atinge os limites da ficção científica ou beira a brincadeira. Mas, atenção: que só assim o parece porque ainda não haviam sido dadas as condições objetivas que permitem ancorar socialmente do modo mais extremo a transformação do humano em capital. Com efeito, o que nos mostra o autor, senão que a aceitação da perspectiva neoliberal implica em traduzir o patrimônio genético de cada um em termos econômicos, isto é em termos de investimento? Por outro lado, o raciocínio merece ser citado por inteiro porque explicita, já em 1979, algo que até hoje não está claro em grande parte das análises sobre o impacto da aliança entre tecnociência e capital, a saber as profundas implicações da conversão da reprodução humana em reprodução do capital. A redução da vida ao cálculo econômico adquire aqui a sua máxima expressão, ao mesmo tempo em que se torna inteligível a matriz de uma forma inédita de eugenia, que já não passa mais por políticas de Estado, mas que se formula “democraticamente” na incorporação das leis de mercado pelos indivíduos, incorporação que, acima de tudo, passa a reger o próprio processo de individuação! Nesse sentido, e como que por antecipação, Foucault já responde a toda essa literatura que virá depois de sua morte, e que tematiza a existência ou não do perigo de uma nova eugenia a partir da biogenética – porque a leitura de Naissance de la biopolitique mostra que devemos procurar a razão das novas praticas eugênicas emergentes, e suas condições de possibilidade, na própria lógica do capitalismo contemporâneo, e não nas fraquezas institucionais, na inconsciência ou inconseqüência dos indivíduos, ou na incapacidade da “bioética” enfrentar os argumentos dos cientistas ou resistir às pressões das corporações da “indústria da vida”.
Por isso mesmo, depois de estabelecer a articulação entre reprodução humana e reprodução do capital – o que, diga-se de passagem, também deverá ter conseqüências importantes tanto para o indivíduo quanto para a espécie –, o filósofo completa:
“Quero lhes dizer o seguinte: se o problema da genética suscita atualmente tanta inquietação, não creio que seja útil ou interessante recodificar essa inquietação a propósito da genética nos termos tradicionais do racismo. Se se quiser tentar captar o que há de politicamente pertinente no desenvolvimento atual da genética, é experimentando apreender suas implicações no próprio nível da atualidade, com os problemas reais que isso coloca. E assim que uma sociedade se colocar o problema do melhoramento de seu capital humano em geral, não há como evitar que não se dê, ou em todo caso que não seja exigido o problema do controle, da filtragem, do melhoramento do capital humano dos indivíduos, em função evidentemente dos casamentos e das procriações que se seguirão. E é portanto em termos de constituição, de crescimento, de acumulação e de melhoramento do capital humano que se coloca o problema político da utilização da genética. Os efeitos, digamos, racistas da genética são com certeza alguma coisa que é preciso temer e que nem de longe foram apagados. Mas essa não me parece a questão política maior atualmente.”[31]
[31] Ibid. pp. 234-235. Grifos meus.
Explicita-se, aqui, talvez, porque o projeto de modificação tecnológica do humano suscita tão pouca resistência e não desperta as ferozes reações que a “engenharia social” encontrou, como bem observa Martins. Pois, do final dos anos 70 para cá, à medida que o neoliberalismo conseguiu fazer prevalecer mundialmente sua perspectiva, tudo indica que o experimentum humanum pode vir a corroborar as conjecturas levantadas por Foucault, isto é, a corresponder às expectativas de um indivíduo contemporâneo que concebe a si mesmo como homo oeconomicus, e a seus “recursos” como um investimento. E é nesse ponto que vale a pena voltar à reflexão de Hermínio Martins expressa em “Genetic Jacobinism in the Republic of Choice”.
Ao escrever seu texto, o sociólogo evidentemente não poderia conhecer o conteúdo do curso que deu origem ao Naissance de la biopolitique. No entanto, o fato de seu ensaio não ecoar a reflexão foucaultiana nem adotar os parâmetros da chamada biofilosofia, torna a ressonância entre as duas démarches ainda mais interessante e aguda, porque permite ao leitor avaliar melhor o que está em jogo. Pois se Foucault elaborou seu pensamento sobre a questão em 1979 centrando sua atenção no desenvolvimento lógico que a relação entre o sujeito de interesse e as possibilidades abertas pela genética deveria produzir; vinte e poucos anos depois, a análise crítica do que efetivamente vem se dando, empreendida por Martins, confirma a evolução indicada anteriormente, transformando a conjectura em realidade.
Martins engaja sua discussão sobre o tema da reprodução humana através da clonagem mostrando o esforço que tanto os partidários dessa tecnologia quanto os especialistas em bioética têm incansavelmente feito para nos fazer acreditar que não há nenhuma ruptura maior, que nos encontramos num caminho aberto pelas tecnologias reprodutivas anteriores, já aceito e referendado. Para eles, o fato de se tratar de uma reprodução assexuada parece não constituir nenhum problema de monta; mas, para Martins, esse é o ponto que exige questionamento:
“Those who seek to legitimate technologies to come on the grounds that they are perfectly continuous with those already “naturalized” in this sense, or in the process thereof, seek to bring about, or to help along, a kind of anticipatory or perhaps propitiatory naturalization (that seems to be what much bioethics is about). More generally the argument seems to be that after a while, sooner or later, every technology including biotechnological, genoengineering, neurological, will be “naturalized”, at least in a progressive society. This principle applies then to technologies involved directly in what one might call second-order or reflexive anthropogenesis, the deliberate technological modification of the human by humans, in contradistinction to the technological modification, intended or unintended, of the non-human environment by humans or simple anthropogenesis, regardless of area, level or scope, permanence, heritability or irreversibility.”[32]
[32] Martins, Herminio. “Genetic Jacobinism in the Republc of Choice”, in Metacritica, vol. 1, no. 1, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2003, pp. 95-96.
Segundo o sociólogo, o argumento da “naturalização propiciatória” supõe que todo tipo de resistência a qualquer inovação tecnológica é o que, precisamente, precisa ser explicado – tendo em vista seu caráter tão “contra a corrente”. Ora, como bem mostra Martins, tal suposição, que opera uma inversão nos termos do problema, é parte da estratégia do lobby que preconiza a aprovação incondicional das novas tecnologias. Mas só a existência dessa estratégia não explica a fraca oposição ao experimentum humanum. Tudo parece indicar que, se há pressão da tecnociência, das corporações e do próprio Estado para que a evolução tecnológica seja “naturalmente” aceita, isso ocorre porque é a economia quem opera a “naturalização propiciatória” do Experimento-sobre-o-Homem pelo Homem, o que levará Martins a revisar a questão da eugenia para verificar como ela também se transformou.
“The eugenic movement which flourished throughout the West between the 1880s and the 1940s advocated and worked strenuously towards major shifts in the reproductive practices and institutions. It was driven by a sense of urgency in the belief that genetic “stocks” ethnic, national, class-wise, perhaps the species itself were deteriorating steadily (…), and this dysgenic master trend hypothesis that our societies are not only genetically sick but genetically deteriorating (…) continues to be reiterated (…). This classical or Mark I type of eugenics envisaged essentially, faute de mieux, changes in reproductive institutions, the laws, regulations and customs concerning who should marry whom, who should be encouraged to have progeny, etc: they diverged as to the relative weight of the social mechanisms, state coercion and suasive agencies (education, propaganda) that should be deployed in relation to what social strata (…). They also diverged on the relative emphasis to be given on “negative eugenics”, the remediation and prevention of dysgeny and on “positive eugenics” to foster genetic improvement in successive generations producing ever-higher average human types (in physical, intellectual and moral terms) in the happily eugenicized populations. Basically the general tendency was to envisage negative eugenics as coercive, relying on the powers of the State to enforce sterilization of various categories such as the mentally deficient (…).”[33]
[33] Idem pp. 100-101.
A eugenia Marco I repousa, portanto, no estabelecimento de uma política estatal que opera fundamentalmente através de mudanças nas instituições envolvidas com a questão da reprodução e, de certo modo, se funda numa racionalidade jurídico-política que rege a intervenção do Estado e justifica ainda em termos de nação e de raça a gestão do melhoramento genético das populações. Como bem observa Martins, eram preconizadas mudanças nas instituições voltadas para a reprodução, não mudanças nas tecnologias reprodutivas.
Ora, não é mais esse o contexto da reprodução humana através da clonagem. Os tempos mudaram:
“(…) the prospects of HRC must be seen within the structural-historical context of ‘techno-capitalism’ (in which technological change has become recognized as the motor of economic growth surpassing the other factors that have hitherto concurred with equal or comparable weight), soon to incorporate perhaps as an important sub-sector a genotechnocapitalism as techno-biological innovation has become a salient area of academic-industrial science capitalism or what I have called elsewhere “the techno-science of commodities” (…) This surge involves the current explosion of genetic and genomic information and information-processing capabilities induced by the race of the Human Genome Project (…), the commodification of epistemic things in genetics and biotechnology, the thrust of genetic engineering in all its phases including not only somatic (…) but also germline genomic engineering, the emerging of global genetic market (…) and the ever-expanding market for genetic services of varied sorts.”[34]
[34] Ibid. p.103.
Todos esses fatores convergem para o surgimento do que Martins denomina a eugenia Marco II, cujas principais características seriam:
. mobilizar as mais avançadas tecnologias de engenharia genética, em vez de visar a mudança das instituições sociais e o marco regulatório;
. não apelar direta e formalmente para o Estado: em vez de enfatizar os deveres e obrigações positivos e negativos, como na eugenia Marco I, preconizar direitos genéticos para os indivíduos, reconhecidos e garantidos pelo poder governamental (o que nos leva a evocar as observações de Foucault relativas à introdução, pelos neoliberais, do Estado de direito na legislação econômica, a fim de que o mercado possa fazer livremente o seu jogo, e a instituição jurídica passe a ser considerada como a regra do jogo);
. não visar nenhum estrato social específico, mas favorecer a micro-eugenia ou a eugenia individualista, legitimada pela linguagem dos direitos individuais e da escolha pessoal;
. ser orientada pelo mercado, isto é conformar-se à ideologia da República da Escolha;
. considerar que os resultados macro, fruto das variadas intervenções micro-eugênicas nos indivíduos e nas famílias, ou até mesmo os possíveis efeitos colaterais negativos de tais atividade geno-econômicas sejam encarados como fora de sua alçada, ao contrário da eugenia Marco I que se concentrava na transformação da sociedade nacional.
Como se pode ver, o que caracteriza a diferença entre as eugenias Marco I e II é a transferência da centralidade da política eugênica do Estado para o mercado, com o concomitante deslocamento da decisão da esfera pública para a esfera privada, mais especificamente para o âmbito da família e do indivíduo, ou melhor, de um sujeito de interesse que calcula qual será a melhor opção. Nesse sentido, é interessantíssimo notar que Martins já antevê o desenho da próxima etapa, da eugenia Marco III, caracterizada por uma espécie de self-eugenics, na qual “the genetic improvement of one’s natural capital or natural assets, the project of natural capital accumulation of the genetic self, of revising one’s genetic biography, or extending one’s genetic curriculum vitae, may become possible.”[35]
[35] Ibid. p. 105.
Importa assinalar que, no entender do sociólogo, essa tendência a uma eugenia Marco III pressupõe o dogma do Indivíduo Absoluto e do Consumidor Soberano, seja quando obedece aos imperativos do que o autor denomina o Preferencialismo Platônico da escola de Chicago, que privilegiaria as escolhas “essenciais” dos que seriam clonados, ou o Preferencialismo Heracliteano da escola neoliberal austríaca, que se concentra em escolhas sempre processuais, sempre mudando de uma situação para outra.
“Agora, escreve Martins, o Consumidor Soberano se sente autorizado a recorrer ao mercado para ter acesso aos genes, como se fosse qualquer outro mercado, o mercado para a terapia genética, o mercado para o ‘capital genético para o self’, e sobretudo para corrigir e aperfeiçoar o dote de recurso genético para sua prole, o que presumivelmente se repetiria de geração em geração, um processo de acumulação de capital genético sem previsão de limites definidos, no qual o Capitalismo Genético pode avançar.”[36]
[36] Ibid. p. 106.
Através da busca constante e incansável do melhoramento contínuo do indivíduo e de sua descendência, o mercado e a engenharia genética se apoderariam então da evolução e, portanto do futuro do humano. Entretanto, ao contrário de Foucault, que vê na “invenção” do homo oeconomicus a redução do humano à dimensão econômica como um processo imanente, Martins concebe a consagração dessa espécie de individualismo radical no Capitalismo Genético como a expressão de uma metafísica que, no pensamento ocidental, instaura um “Princípio de Plenitude” cuja finalidade última não é o interesse econômico, mas a perfeição. Nesse sentido, se a atividade tecnocientífica exige a concretização do imperativo tecnológico, é porque na sociedade contemporânea o Princípio de Plenitude só pode ser concebido através do avanço constante da tecnologia, o que, evidentemente confere a esta um caráter sublime. Vemos, então, se reintroduzir, de um modo sutil, a idéia de que, apesar das aparências em contrário, o econômico se encontra, em última instância, subordinado a um pensamento transcendental e religioso que o sociólogo deseja criticar para explicitar suas implicações perigosas tanto ao futuro da espécie quanto do planeta.
Diante dessa espécie de fundamentalismo da tecnociência e do mercado, preocupado com as conseqüências dessa metafísica, Martins invoca a necessidade de limites. E como em termos políticos o extremismo da equação tecnociência + mercado se traduz numa forma de terror que pretende impor a universalização do melhoramento genético, o sociólogo qualifica a nova ordem como “Jacobinismo Genético”, cuja pretensão seria a de representar “a vontade genética geral da espécie”. Assim, escreve:
“Jacobinism involved the fusion of the executive, legislative and judicial powers: it refused any limitations of power according to a Constitution, indeed it refused any limits in the name of the people, as in this case genetic Jacobinism refuses any limits, any constraints, in the name of science or progress which replaces the people and its general will. (…) today, fortunately, all you need is to work through the market in the name of Choice and with the immense help of profit-seeking ventures and corporations. (…) Jacobinism via the market! The Jacobins missed their hour, but the biocrats or genocrats of the world have met their hour of destiny, not in a dictatorship or totalitarian system (…), not via state legislation in democracies, but at least in the first instance in market democracies which in the present conjuncture afford the greatest window of opportunity for biocratic and genocratic projects, for the diffusion of “genetic capitalism”(…) Their hour of destiny (…) is also our hour of being subjected to their designs. We will be the guinea-pigs of yet another phase of the Experimentum Mundi, and more specifically the Experimentum Humanum of a supposed megalanthropia accomplished through genetic science and engineering. “Genetic capitalism” the last and highest phase of capitalism?”[37]
[37] Ibid. p. 108.
Hermínio Martins
in memoriam (1934 – 2015)
*Esta página foi criada a partir do texto “Experimentum humanum, risco e economia política”, publicado In: Manuel Villaverde Cabral; Jose Luiz Garcia; Helena Mateus Jeronimo. (Org.). Razão, tempo e tecnologia: estudos em homenagem a Herminio Martins. 1ed.Lisboa: ICS – Imprensa de Ciencias Sociais, 2006, v. 1, p. 385-410.
Imagem de apresentação do post na home: Ernst Haeckels – Kunstformen der Natur (domínio público in viintage.com)
Primeira imagem no post: First underwater nuclear explosion, 1946, in lostateminor.com