[I] Os críticos de arte e comentadores da obra de Partenheimer, sejam eles europeus, chineses ou brasileiros, freqüentemente apontam para o caráter meditativo, aéreo, alegre, imaginativo, e até mesmo lírico de seus desenhos e pinturas, sem esquecer, obviamente, do enigmático equilíbrio que torna sua obra inconfundível, e do silêncio que parece habitá-la (que se pense nas séries do Diário Romano, de Carmen, de De Coloribus, de…

No século XVI, esse século em que os povos primitivos do Novo Mundo entram, trágica e irremediavelmente, na história, um dos homens mais livres e lúcidos que a civilização já produziu, Michel de Montaigne, escreve nos Ensaios a respeito dos índios que Villegaignon por aqui encontrou. E lamenta que Licurgo e Platão não os tenham conhecido. “É um país, diria eu a Platão, onde não há comércio de qualquer natureza, nem literatura, nem matemáticas; onde não se conhece sequer de nome um magistrado; onde não existe hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos e pobres. Contratos, sucessão, partilhas aí são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos; o vestuário, a agricultura, o trabalho dos metais aí se ignoram; não usam vinho nem trigo; as próprias palavras que exprimem a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia, o perdão só excepcionalmente se ouvem. Quanto a República que imaginava lhe pareceria longe de tamanha perfeição!”
Montaigne não se limitou aos relatos de um homem que tinha a seu serviço e que vivera dez ou doze anos na “França Antártica”; nem as informações de marinheiros e comerciantes que este lhe apresentara – narrações que falam da bravura dos índios, da coragem arborada acima de tudo. Queria saber mais; e por isso procurou conversar com um dos três selvagens que visitaram a corte de Carlos IX, em Rouen. Montaigne registra então os comentários dos estrangeiros a respeito da sociedade civilizada. Primeiro, seu espanto diante da sujeição de homens fortes e armados (provavelmente os suíços da guarda do rei) a uma criança, achando que seria mais natural se escolhessem um deles para o comando.
“Em segundo lugar observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica a tais infelizes chamam ‘metades’); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais.”
Montaigne lamenta que o Velho Mundo não tenha conhecido antes esses povos, não os tenha descoberto nos tempos de Licurgo e de Platão, quando havia homens capazes de apreciar o valor que portam esses índios, mais livres até do que os gregos podiam imaginar. Mas o filósofo renascentista desconhece que o privilégio de sua descoberta tem um preço; e que o preço está sendo pago pelos ameríndios, no tempo mesmo em que Montaigne escreve. Esse preço é a morte, o extermínio em massa, provocado pelo encontro das sociedades primitivas com as civilizadas. Encontro aterrador, se ouvirmos o que diz Pierre Chaunu, comentando as pesquisas da Escola de Berkeley: [1]
“Os resultados de Borah e Cook levam a uma revisão completa de nossa representação da história americana. Não se deve mais supor que a América pré-colombiana tenha tido os 40 milhões de homens segundo o Dr. Rivet e considerados excessivos, mas sim, talvez, 80, 100 milhões de almas. A catástrofe da Conquista […] foi tão grande quanto Las Casas denunciara”. “Grosso modo, é um quarto da humanidade que os choques microbianos do século XVI terão aniquilado”.
[1] Citado por P. Clastres, “Eléments de démographie amérindienne”, La société contre l´État. Paris, Minuit, 1974, p. 86.
* * *
Mas o extermínio não se restringiu ao século de Montaigne; foram quase cinco séculos de genocídio que tomou as diferentes formas repertoriadas pelo prof. Oracy Nogueira, em seu artigo em defesa de Juruna:[2] expulsão de suas terras, espoliação, escravização, estupros, assassínios, doenças, destruição de seu habitat e de sua cultura. E se continuamos ignorando precisamente quantos milhões de índios viviam no Brasil no século XVI, nem ao menos sabemos ao certo quantos deles sobrevivem. Juruna, por exemplo, certa vez afirmou a necessidade de estatísticas idôneas, argumentando que, se para o governo o número aproxima-se de 190 mil, a seu ver os extermínios e as mortes por falta de assistência médica adequada reduziram-nos a uns 90 mil.
[2] Folha de S. Paulo, 7 de outubro de 1983.
É de dentro da realidade incontornável do genocídio multissecular que vemos se esboçar, com traços cada vez mais fortes, uma figura. Aos olhos do homem branco de São Paulo, suas primeiras marcas surgem em 1974. Marcas de uma voz que se forjara, primeiro ouvindo da boca do pai cacique a fala da tradição xavante; depois, exercitando-se na diáspora da tribo, no primeiro contacto com o branco em 1951, no relacionamento com os padres salesianos, no trabalho para o fazendeiro em troca de comida, no aprendizado da língua de branco, língua do inimigo, no retorno à aldeia. E o que diz essa voz em 1974? Fala da guerra xavante contra os invasores de suas terras, do decreto do presidente da República que deveria pôr fim a ela em 1972 através da criação de uma reserva indígena, do protesto contra a permanência dos fazendeiros apesar da intervenção federal.
Desde o início, a voz de Juruna ocupa um lugar específico. Ela evidencia que, na luta pelo espaço, os xavantes trocaram o arco pelo discurso quando o governo se pronunciou reconhecendo os seus direitos, forçado pela própria existência da guerra. E o fizeram investindo o guerreiro Juruna, o filho do cacique que procurava o contacto com os brancos para impedir a extinção – investindo-o como aquele que porta a sua voz junto à instância federal. Mas, imediatamente, a fala que porta a voz dos xavantes porta também uma condição: a linguagem emitida pelo interlocutor, para ser ouvida e respeitada, precisa ser efetiva; quer dizer: precisa se manifestar por um efeito real.
Ora, já em 1974 temos notícia de que o chefe guerreiro Juruna duvida da palavra oficial, como atesta seu diálogo com o então ministro do Interior, Rangel Reis:[3] “Mário pediu que o ministro escrevesse num papel as providências que iria tomar (para a retirada dos fazendeiros das terras da reserva).
_ Além disso – afirmou – tudo o que é escrito fica como prova.
_ Mas você não acredita em mim? – perguntou Rangel Reis.
Mário não respondeu.”
[3] Jornal da Tarde, 30 de outubro de 1974.
Nas primeiras marcas deixadas pela voz do xavante na imprensa aparece, assim, desde o início, um duplo enunciado. Por um lado, a voz afirma a luta, agora política, do guerreiro por um território para o seu povo; por outro, diz que para Juruna a linguagem engaja, é segmento de ação – e não dissimulação. A fala pressupõe um protocolo de lealdade, o que, aliás, é cristalinamente expresso por Juruna quando diz: “O xavante quando fala tem muito caráter, ele não tem medo”. E se a fala governamental tentar se furtar a essa exigência que a própria linguagem impõe, deve ser posta à prova: ou se efetiva, transformando em gestos a palavra dada, ou se desmente, e então deve ser desmascarada como falsa fala, como fala que não vale nada. O que, evidentemente, desqualifica a voz e o porta-voz que a sustentam.
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Se houvesse espaço para examinar aqui os pronunciamentos de Juruna publicados na imprensa ao longo dos últimos dez anos, seria fácil demonstrar que o cacique não só permaneceu fiel ao duplo enunciado inicial, como ampliou o seu âmbito e aperfeiçoou sua dicção. Por um lado, a luta, política, pelo reconhecimento do território alargou-se quando, durante o governo Geisel, os esforços resultaram na demarcação legal e de fato da reserva de São Marcos, ampliando-a de 14 mil para 180 mil hectares; com a saída dos brancos, o cacique passaria a colocar sempre, obstinadamente, a mesma reivindicação agora estendida às outras tribos: demarcar as terras indígenas, exigir o respeito à demarcação e escritura das terras demarcadas. “Quero demarcar terra do índio. Palavra de Juruna.” Por outro lado, a própria luta foi mostrando ao cacique que a evolução do conflito passava pelo choque entre as falas índia e branca, pela capacidade de trabalhar o que se configurava como uma escandalosa contradição entre elas. Pois o xavante passava a exigir que se cumprissem as promessas contemporizadoras dos tecnocratas do Incra e da Funai, do governador de Mato Grosso, do ministro, do vice-presidente da República. E ia galgando os escalões da hierarquia, cobrando a palavra empenhada.
Foi “lutando assim, na palavra”, que Juruna descobriu o potencial do gravador, essa pequena maravilha eletrônica, produto de ponta da civilização. Com o gravador, não havia necessidade de pedir ao interlocutor que assumisse por escrito a palavra dada – o que este, aliás, nunca faz, precisamente para evitar o incômodo desdito. Sem o saber, o primitivo reatava o gesto do “homem do gravador”, o belga sofisticado que um belo dia abriu uma brecha no respeitável edifício da psicanálise ao acionar o aparelho no consultório de seu analista.[4]
[4] J. J. Abrahams, L’Homme au magnétophone. Paris, Le Sagittaire, 1976.
Lá como aqui, o gravador funciona como o analisador de uma situação onde a prepotência e a manipulação exercidas por um dos interlocutores sobre o outro só podem se manter em segredo, sem testemunhas, num espaço onde, socialmente, a fala de um cai sob a tutela da fala do outro. Lá como aqui, a simples introdução da maquininha já é uma revelação, no sentido fotográfico do termo. Basta comparar a fala do doutor Van Nypelseer, psicanalista, com a do “doutor” Van der Brooke, diretor do Departamento Geral de Operações da Funai. O primeiro diz ao analisando Abrahams: “Ou você o tira da sala, ou termina a conversa. Estamos entendidos! Concordo em explicar-lhe o que queria explicar; mas, no momento, ou esse gravador sai fora, ou não direi mais nada; lamento muito, mas não farei isso”. O segundo diz ao índio Juruna: “Por que você está gravando isso aí? Vamos deixar de papo, vamos conversar direitinho. Porque eu estou aqui para conversar direito com vocês, para fazer as coisas que devem ser feitas. Você vem aqui conversar comigo, eu digo a verdade pra você, então não precisa esse negócio de gravar. É papo furado”. Lá como aqui, o que mina o fundamento da dominação disfarçada e inquieta o seu agente é a ameaça de uma exposição, é a possibilidade de tornar público o que se diz, de torná-Io passível de avaliação por todos os outros. Lá, Sartre servirá como correia de transmissão, e o Temps Modernes como caixa de ressonância, instaurando-se a polêmica; aqui, serão os jornalistas e a grande imprensa, fazendo a questão indígena repercutir nos grandes centros.
Juruna estava lúcido quanto ao processo. Anos depois dirá, num depoimento: “O governo só prometendo, só prometendo. Então eu resolvi comprar o gravador para gravar tudo o que eles diziam. E resolvi também procurar a imprensa, a televisão. Foi a vida que me ensinou que eu devia procurar. Se não fosse a imprensa, ninguém saberia da vida da gente. Parecia brincadeira, não adiantava nada. Mas, depois que usei o gravador, acabei conseguindo a demarcação, de São Marcos primeiro , e de outras aldeias, depois”.[5]
[5] Fatos e Fotos, 29 de julho de 1982.
* * *
A imprensa acha picante esse índio eletrônico, que perturba e desmonta burocratas e políticos de Brasília. Juruna, com agudo senso, capta a oportunidade, fura a barreira do silêncio que se abate sobre a condição indígena. Mas à medida que se faz tribuno, desloca-se o terreno onde as falas se confrontam.
O cacique não se limita mais a reivindicar: faz denúncias precisas sobre a violência exercida contra as diferentes tribos; demonstra que, na Funai, o interesse do índio é o último a ser levado em consideração; questiona uma política que, na prática, invoca a tutela para melhor condenar os tutelados à espolia, à proletarização, à extinção. Por sua vez, a falsa fala não se restringe mais às tentativas de enganar o xavante. De um lado, procura esvaziar a gravidade das acusações que essa voz porta – fabricando um personagem folclórico e bonachão, “bem brasileiro”, valorizando seus encontros e desencontros com os costumes civilizados, deformando o sentido de sua atuação, enterrando o combate leal, político, sob a cascata de detalhes irrisórios. De outro, promove campanhas para denegri-Io e desqualificar o seu discurso – como as miseráveis notinhas que Zózimo Barrozo do Amaral planta sistematicamente na coluna social do Jornal do Brasil, para fixar a imagem de um índio que traiu o seu povo em troca das benesses da sociedade de consumo. Pois como diz o banqueiro Teófilo de Azeredo Santos: “O Zózimo está retratando de modo muito feliz a caricatura de índio que é o Juruna, um índio atípico com tendências agressivas para o consumo – não de carne humana, especificamente – que, sob a capa do indigenismo, está faturando alto”.
Mas fracassa a rede de intrigas que visam a indispô-Io com os xavantes e outras tribos; como fracassa a tentativa governamental de impedir a participação de Juruna no Quarto Tribunal Bertrand Russell na Holanda, que, em 1980, apura denúncias de genocídio contra populações indígenas da América. O cacique recorre então ao Tribunal Federal de Recursos e este, em decisão histórica, reconhece seu direito de viajar.
Tal fracasso não dá cabo, porém, da imagem pouco séria que persiste, colada ao xavante. Quando no ano seguinte este resolver candidatar-se a deputado federal, as bocas novamente se abrirão num sorriso irônico. Sondado, o PMDB de São Paulo se fecha em mutismo, protelando a resposta, enquanto outros advertem que a candidatura de Juruna corre o risco de tornar-se um novo Cacareco. Um índio no Congresso? Só pode ser piada. Neste seriam mais apropriados o discurso melífluo das velhas raposas da política, a linguagem calculista dos Maluf, a retórica erudita dos ex-embaixadores, a verborreia da oligarquia nordestina – no limite, a língua comedida de uma oposição que, lembrando-se de 68, sabe da necessidade de falar com muito tato… Poucos são os que, como o deputado do PT carioca José Eudes, encaram com muita seriedade a candidatura Juruna, por “representar o acesso ao Poder Legislativo, pela primeira vez na história, aberto a este brasileiro explorado, oprimido e dizimado que é o índio”.
* * *
O cacique ingressa no PDT de Brizola e se elege deputado federal pelo Rio de Janeiro, no pleito de novembro de 1982 – 31.904 votos. A que se deve a vitória? Ao reconhecimento da causa de Juruna? Ou ao fato de ter se tornado, para o país, o objeto de um carinhoso folclore, como escreve Hélio Jaguaribe? Mas não importa. É preciso constatar: no Brasil, ninguém pode alegar representatividade maior que a dele. Sem dinheiro, sem experiência político-partidária, sem máquina e currais eleitorais, sem favores, Juruna é deputado. Sua voz é duplamente representativa: agora porta a voz dos indígenas, que não puderam ajudá-lo a vencer porque nem sequer são cidadãos e, portanto, não votam; e porta a voz de parcela da população não-índia, dos que são integralmente brasileiros e que legitimaram sua liderança nas urnas.
Juruna tem pelo Congresso e por seu mandato o mais alto apreço. Porque concebe sua atuação como desdobramento da luta política do guerreiro que trocou o arco pelo discurso; e porque vê a Câmara como o terreno em que a guerra continua, sem ser mortífera. Nesse sentido, lembra Elias Canetti,[6] quando este escreve sobre a essência do sistema parlamentar:
“A massa dos mortos fica fora do jogo. Dentro do parlamento não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa de maneira mais clara na imunidade parlamentar, que tem um aspecto duplo: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares […]”. “O sistema parlamentar funciona enquanto se mantiver esta imunidade. Ele desmorona assim que se permita contar com a morte de qualquer um dos membros da corporação. Nada é mais perigoso do que ver mortos entre estes vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui mortos em seu resultado. Um parlamento somente é um parlamento enquanto excluir os mortos.”
[6] E. Canetti, Massa e poder. São Paulo, Melhoramentos/Ed. Universidade de Brasília, 1983. pp. 207-8.
Difícil expressar melhor o sentido atribuído ao Congresso que esses dois gestos de Juruna: o primeiro, colocando na cabeça do presidente da Casa, Flávio Marcílio, o cocar que lhe conferia as qualidades de morubixaba ou tuxaua, de um líder do seu povo – honraria poucas vezes concedida, principalmente a um branco –; o segundo, assinando, embora relutantemente, a terceira versão da carta “de retratação” (entre aspas), “em homenagem” ao presidente da Câmara. Por outro lado, o simples exame da atuação do deputado ressalta a tônica de sua fala em plenário; da posse à crise, o xavante fez dez intervenções, entre discursos e apartes – e nelas denunciou inúmeras vezes o papel do Ministério do Interior e da Funai em face da violência feita aos índios de diversas tribos, pediu e obteve a criação de uma Comissão do Índio no Congresso, criticou o Executivo, apontou a situação das populações não-índias marginalizadas, pediu a demarcação das terras.
No entanto, tudo isso não foi suficiente para que se percebesse algo fundamental: que os gestos e a fala de Juruna visavam a fazer com que a política indigenista começasse a sair da esfera do Executivo e passasse a ser delineada pelo Legislativo. Quer dizer: que escapasse das decisões arbitrárias, sigilosas, inexplicáveis, para ser exposta, debatida e votada pelos deputados. Quase ninguém se deu conta da dimensão revolucionária dos gestos e da fala xavantes. Revolucionária, com efeito, se os analisarmos à luz de um rascunho de Marx[7] que diz:
“O poder legislativo fez a Revolução Francesa, de um modo geral ele fez, em toda parte, as grandes revoluções universais […] porque o poder legislativo era o representante do povo, da vontade geral”. Ao contrário, o poder executivo, “o poder governamental, fez as pequenas revoluções, as revoluções retrógradas, as reações”; o poder executivo revolucionou “não por uma nova constituição contra a antiga, mas contra a constituição, e isso precisamente porque o poder governamental era o representante da vontade particular, do arbítrio subjetivo, da parte mágica da vontade”.
[7] Citado por J.-P. Faye, Théorie du récit – Introduction aux “Langages totalitaires”. Paris, Hermann, 1972, p. 89 [ColI. Savoir].
Poucos apreenderam a dimensão dos gestos e da fala xavantes. Entre eles… o Executivo. Juruna elegeu-se em novembro de 1982 e tomou posse em março do ano seguinte. Dia 23 de fevereiro, o governo federal baixou o decreto-Iei nº 88.118, que dispõe sobre o processo administrativo de demarcação de terras indígenas. Em seu terceiro parágrafo, está escrito que qualquer proposta de demarcação passará a ser examinada por um grupo de trabalho composto de representantes dos Ministérios do Interior e de Assuntos Fundiários, da Funai e de outros órgãos federais e estaduais julgados convenientes. O que isso significa? Praticamente, o decreto bloqueia a demarcação de novas reservas, já que o governo federal permite que os executivos estaduais se oponham à cessão de suas terras, se assim o desejarem. E assim o desejam.
* * *
De repente, salta aos olhos a constatação: dentro do Executivo, Juruna é alvo de discriminação, independentemente, até, do que fala e faz, mas apenas pelo fato de ser índio, por sua condição. Muito antes da crise que acaba opondo-o ao governo, duas das mais altas autoridades da República estabelecem os pólos extremos em que se move essa discriminação. Ainda em 82, o ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Matos, a ele se refere numa ordem do dia como a um “aculturado exótico de tangas”; e quando o deputado lhe escreve refutando o epíteto e cobrando-Ihe, inclusive, com quantos votos foi eleito, recebe como resposta uma carta desdenhosa, que termina dizendo: “[…] V. Exa., a bem da verdade, não é, sem dúvida, a voz mais autêntica do verdadeiro índio brasileiro”. Por sua vez, o general Figueiredo critica o eleitorado carioca por ter votado num silvícola enquanto os eleitores de Mato Grosso (Estado de maior população indígena do país) escolhem o nome do embaixador Roberto Campos. E, novamente, o cacique devolve o comentário apontando que a legitimidade do presidente não repousa nas urnas, pois “foi eleito com o voto de uma pessoa”.
As afirmações do ministro e do presidente são contraditórias entre si. O primeiro acusa Juruna de ter perdido a identidade, de não mais ser índio de verdade; o segundo acusa-o de ser um silvícola e de receber a preferência popular enquanto tal. O primeiro recusa o índio que é deputado; o segundo, o deputado que é índio. Mas, ao se excluírem mutuamente, ambos acabam revelando suas intenções: circunscrever o índio-deputado em um espaço impossível, irrespirável. O espaço do não-reconhecimento. E se fôssemos mais longe, poderíamos perceber que os dados todos da crise de outubro já estão reunidos muito antes de ela acontecer: além da disposição do Executivo para o não-reconhecimento, antes mesmo da posse, em dezembro de 82, já se discute que Juruna poderá futuramente ser punido, com base no Regimento da Câmara, por “quebra do decoro parlamentar”. O motivo: o cacique-deputado recusa o paletó e gravata e quer pronunciar seus discursos em língua xavante. Os dados já estão reunidos, basta que o dispositivo se ponha em marcha. Quando se “solucionar” a fabricada crise de outubro, Juruna será punido como índio e como deputado.
* * *
Mas não é só o núcleo central do Executivo que o acusa ora de ser índio, ora de não mais sê·lo. Para o coronel Ivan Zanoni Rhausen, chefe da Assessoria Geral de Estudos e Pesquisas da Funai, por exemplo, o cacique-deputado “não está desempenhando o papel de índio” no Congresso e pode causar muitos estragos, pois “é um iletrado, mal sabe escrever, fala de improviso e diz muitas barbaridades”. Que barbaridades? Entre outras, talvez, a responsabilidade da Funai nos conflitos que envolvem os pataxó hã-hã-hães no sul da Bahia, que Juruna denuncia a 9 de julho de 1983 e que aponta pessoalmente ao general Figueiredo em sua entrevista no Palácio do Planalto, no início de setembro. Como sempre, sua exigência de justiça não encontra eco – e a situação dos pataxós se degrada a cada momento que passa. Juruna então sobe à tribuna da Câmara a 26 de setembro para reiterar as denúncias que, ao menos aparentemente, ninguém quer ouvir. No meio do discurso, pronuncia a famosa frase. Para menos de vinte ouvintes.
Os desdobramentos do episódio são conhecidos. “O comportamento do Juruna mais do que justifica a perda do seu mandato”, declara o porta-voz da Presidência da República, Carlos Átila, que precisa: “[…] o comportamento desse deputado compromete a própria instituição parlamentar e a dignidade da atividade política”. Mas a Câmara contém a violência desfechada pelo Executivo e obtém a não-cassação, em troca de uma “censura escrita”. Fica, entretanto, a pergunta: o Congresso, as oposições e a imprensa defenderam efetivamente o índio e o deputado?
Salvo exceções – entre as quais o jornalista Gerardo Mello Mourão, a antropóloga Sylvia Caiuby Novaes, o deputado Eduardo Matarazzo Suplicy (que, na condição de líder em exercício do PT, solidarizou-se com Juruna e discordou da punição ao índio e ao deputado) – , é forçoso reconhecer que a resposta tem de ser negativa. Pois a defesa se fez dentro do espaço delimitado pela discriminação; vale dizer: pelo racismo. O que esboça um quadro eloquente sobre a maneira como é entendida a questão do índio no Brasil.
No Dia do Índio, todas as lideranças partidárias haviam lembrado as raízes indígenas da nacionalidade brasileira. Agora, que se trata de defender o índio real, o cacique deputado, vejamos em que termos elas o fazem. Comecemos pelo próprio presidente da Câmara, Flávio Marcílio. Frente à fúria do Executivo, sua primeira atitude consiste em mandar suprimir o pronunciamento de Juruna do Diário do Congresso Nacional – atitude que, aliás, repete os procedimentos tipicamente stalinistas com que o poder ditatorial dos países socialistas trata as falas discordantes. Em seguida, pauta sua defesa numa curiosa leitura legalista do Código Civil: “Deve-se levar em consideração que o deputado Mário Juruna é relativamente incapaz perante o Código Civil como são os menores e os doentes mentais”. O presidente da Câmara se equivoca: os loucos de todo gênero são absolutamente incapazes, bem como os menores de dezesseis anos; relativamente incapazes são os maiores de dezesseis e menores de 21, os pródigos e os silvícolas. O que pensar dessa equiparação, senão que o índio é tão irresponsável quanto o louco e a criança? Mas à frase de Marcílio encadeia-se uma outra: “Não acredito que a sua atitude venha a colocar em perigo as instituições”. Se supusermos que o índio é irresponsável, sua fala é inconsequente; e não é por isso que é inofensiva?
Juruna é “praticamente uma criança”, argumenta o deputado Walber Guimarães, do PMDB. “Trata-se de um irresponsável, um tutelado”, diz o ex-governador Paulo Pimentel, acrescentando que o cacique não deveria ser deputado exatamente pelo fato de ser índio, enquanto o editorial de O Globo discute: ou é irresponsável, e não sabe o que diz, ou não o é, e então “a simples aceitação dessa hipótese representa agravo ao Legislativo talvez maior do que a cassação de um mandato”. É um “parlamentar irresponsável”, que fez um discurso “insignificante”, continua a revista Veja, para quem Juruna é pitoresco, agressivo, mal-humorado, imprevisível. Indo-se “ao ‘AuréIio-Açu’ da vida real”, esclarece a revista, “descobre-se que Juruna tem uma linha de defesa exótica”. Comentário que, a seu modo, também ressoa no editorial da Folha de S. Paulo sobre “O caso Juruna” e que começa assim: “As declarações insultuosas do deputado Mário Juruna (PDT-RJ), irresponsavelmente dirigidas contra a cúpula do Executivo federal […]”; para, mais adiante, sublinhar a “atitude indefensável do parlamentar xavante”.
Índio: irresponsável, criança – débil mental que não sabe o que diz? O senador Jarbas Passarinho comenta a “algaravia” proferida pelo cacique-deputado, na tribuna da Câmara. O jornalista Newton Rodrigues escreve que ele fez “destrambelhadas declarações”, enquanto o senador José Sarney exclama, enfático: “Se o Juruna não fala português e não tem capacidade legal, não pode ser deputado”. Por sua vez, o governador Tancredo Neves, no mesmo momento em que procura defender o índio, retira dele a força do deputado: “Eu tenho a impressão de que o deputado Mário Juruna tem que ser interpretado não como um parlamentar na plenitude de suas prerrogativas. Ele é um homem ainda não perfeitamente reaculturado”. Pobre Juruna! A julgar pelo que dizem seus companheiros políticos e a imprensa, nem deputado por inteiro ele é: é meio-deputado. Parlamentar incompleto, “figura folclórica”, como diz Josué Guimarães, que esclarece: “Juruna tem sido levado na galhofa por quase todos, exceção feita quando incomoda ou quebra algumas regras ditas civilizadas”. E surge, então, a figura do coitadinho, defendida pelo líder do PDT na Câmara, Bocaiuva Cunha: “Juruna nunca quis prejudicar ninguém, muito ao contrário, sempre se esforçou na defesa de ideias quase puras, na prática de um discurso repleto de expressões ingênuas”.
Juruna – o coitadinho bem-intencionado que, segundo a revista Senhor, “ao seu modo tosco e generalizante” traduziu, ao pronunciar seu discurso, os sentimentos da maioria do povo brasileiro sobre a eficiência [sic] de alguns ministros do governo Figueiredo”. Juruna – o anti-herói. Tão por baixo… Mas, cuidado! É preciso minimizar o episódio. Senão, pode dar na telha do índio de partir para as ações mais tresloucadas. Pois, como argumenta o editorial de O Estado de S. Paulo: “Valorizar o episódio para intimidar o Legislativo é que não tem sentido. Ou o que se quer é dar a Juruna a oportunidade de imaginar que é Touro Sentado, reunir as federações índias e incumbir Cavalo Louco de derrotar o general Custer em Little Big Horn?”
Decididamente, esse cacique-deputado não tem mesmo sorte. Até o presidente de honra de seu próprio partido, o governador Leonel Brizola, o diminui quando o defende: “Tudo o que eu puder fazer pelo Juruna, farei”. E pede “uma compreensão especial” para o deputado: “Ele é um índio. Tem dificuldades em se expressar. Não tem clareza de raciocínio e faz um grande esforço para falar português. Acredito que a Câmara deverá considerar seu caso com generosidade, assim como as autoridades do governo”.
Nem mesmo o professor de ciência política Paulo Sérgio Pinheiro escapa do terreno da discriminação. Seu artigo na Folha de S. Paulo é uma bela defesa do cacique-deputado. Pena que termine com as palavras: “[…] o homem branco, o governo, deveria largar o tacape e dar provas de maior civilização”…
* * *
O que dissera Juruna, do alto da tribuna da Câmara?
“Parece que este presidente da República também ele é contra a nação indígena, ele é contra o povo. Se fosse presidente bom, tinha tomado atitude do que está acontecendo com os índios.”
“Não tem ministro nenhum que presta. Para mim todo ministro é corrupto, todo ministro é ladrão, todo ministro é sem-vergonha, todo ministro é mau-caráter. […] Ninguém pode dizer que Juruna não presta. Quem não presta é todo ministro, quem não presta é todo milico, esse pessoal que tira a polícia no quartel contra índio.”
Como ouvir, então, a fala de Juruna? Nos dias subsequentes, desencadeada a tormenta, o cacique-deputado fornecerá precisões. Estava falando sobretudo da barbaridade que estão fazendo com os pataxós; não quisera ofender ninguém em termos pessoais mas atacar o governo como um todo; dissera a verdade, e não adiantava a autoridade ficar revoltada contra a verdade; não se arrependia, não se retratava nem pretendia calar-se; no Brasil, era preciso criar lei para garantir a vida das pessoas, não para controlar a liberdade de dizer; e concluía, imediatamente após o desenlace da crise: chamar de ladrão não é crime. Crime é roubar terras de índio.
Descobre-se então que a fala de Juruna é infinitamente mais grave do que se tivesse acusado pessoas. Porque faz o processo do processo, toca na ferida central de uma sociedade dividida em dominantes e dominados, nomeia o seu mal: a tirania. Com espantosa clareza, o cacique-deputado diz: nesta sociedade, o lugar do poder é podre. Neste sentido, Juruna reencontra a fala de Etienne de La Boétie, o amigo de Montaigne, que no século XVI escrevia, em seu Discurso da servidão voluntária: “Como dizem os médicos, se há em nosso corpo alguma coisa estragada, logo um outro lugar onde nada está acontecendo rapidamente se dirige para a parte bichada; do mesmo modo, logo que um rei declarou-se tirano, tudo que é ruim, toda a escória do reino – não falo de um monte de gatunos e desorelhados que numa república não podem fazer muito mal nem bem, mas dos que são manchados por ambição ardente e notável avareza – reúnem-se à sua volta e o apoiam para participarem da presa e serem eles mesmos tiranetes sob o grande tirano”.
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Juruna – irresponsável, criança, débil mental, caricatura de índio, meio-deputado, anti-herói, pobre coitado sem clareza de raciocínio? Não. Juruna bravo guerreiro, parlamentar por inteiro. A ironia da história quis que a maioria de seus pares no Congresso o defendesse sublinhando a pretensa inferioridade do cacique-deputado. Sublinhando a desigualdade. Quis ainda que, mais uma vez, os indígenas nos dessem uma lição de sabedoria, de política, deixando claro que não são eles as “metades de homens”, segundo o registro de Montaigne.
Pois no dia 3 de outubro de 1983, estampada na primeira página dos jornais, vemos uma imagem. Comovente, admirável. Nela Juruna chega ao edifício do Congresso apoiado por vários índios. São caciques e guerreiros xavantes, carajás, bacairis, terenas, txucarramães, calapalos e auacaditis. Alguns pertencem a povos tradicionalmente inimigos dos xavantes. Como Raoni, chefe dos txucarramães, que conta: “Tive um sonho. Deuses da tribo pediram para ajudar Juruna”.
Publicado in
SANTOS, Laymert Garcia dos. Tempo de Ensaio. São Paulo: Companhia da Letras – Editora Schwarcz, 1989. pp. 35 a 51.