[I] Os críticos de arte e comentadores da obra de Partenheimer, sejam eles europeus, chineses ou brasileiros, freqüentemente apontam para o caráter meditativo, aéreo, alegre, imaginativo, e até mesmo lírico de seus desenhos e pinturas, sem esquecer, obviamente, do enigmático equilíbrio que torna sua obra inconfundível, e do silêncio que parece habitá-la (que se pense nas séries do Diário Romano, de Carmen, de De Coloribus, de…
Risco do apagão desperta o país para a farsa da modernização propagada nos últimos anos
Ainda é cedo para formar um juízo sobre o sentido mais amplo da crise energética e de seus desdobramentos, mas talvez valha a pena alinhavar algumas considerações sobre o contraste entre a conduta do governo e o comportamento da sociedade que, sem brincadeira ou trocadilho, o “apagão” ilumina. Os comentaristas têm apontado o show de imprevidência, incompetência e inconstitucionalidade que vem caracterizando a condução do problema pelas autoridades e enfatizado o estrago que a falta de energia, associada à cascata de denúncias de corrupção nos altos escalões, está fazendo na imagem de FHC e dos tucanos. Têm escrito sobre o modo irresponsável como os governantes atuaram e atuam, e esse parece ser o traço mais revelador, agora que se desfez a aura de modernidade e eficiência mantida durante anos a golpes de marketing. Com efeito, apesar das evidências gritantes em contrário, o presidente e seus ministros não assumem a responsabilidade que lhes cabe: Fernando Henrique atribui o transtorno à falta de chuva, “agradece” a solidariedade das crianças e donas-de-casa, “reconhece” o “esforço fantástico” da população para poupar energia e se limita a dizer que o Brasil precisa superar mais esse “obstáculo”.
Incompetência e irresponsabilidade são, assim, transformadas em “cruzada cívica” que une povo e governantes diante de mais uma “adversidade” inimputável. Como não se sentem responsáveis, os governantes consideram que não têm que se explicar para a sociedade nem justificar por que a sua estratégia política é não ter política estratégica, por que o seu plano é não ter planejamento, por que não houve investimento, por que as privatizações do setor elétrico foram tratadas com todas as atenções para com o capital privado e sem o menor resquício de espírito público. Por isso mesmo, quando questionados, os irresponsáveis reagiram arrogante e desabusadamente, no estilo “os incomodados que se mudem”, ou melhor, como Maria Antonieta, “se não têm pão, que comam brioche”. O mais grave é que a irresponsabilidade veio acompanhada de uma tentativa de transferir inteiramente o ônus para as costas da população.
Em vez de um pedido de desculpas, de uma cobrança das empresas geradoras e distribuidoras e de um chamado para que Estado, empresas e sociedade cooperassem num esforço conjunto, os governantes passaram a nos ameaçar com todo tipo de punição -multas, cortes de luz, sobretaxas-, como se ainda estivéssemos na senzala. Como se viu, a única solução entrevista e proposta fundava-se na obediência primária aos desmandos da tecnocracia. Obediência é o que os “especialistas” do Ministério do Apagão esperavam quando, em suas reuniões, se referiam debochadamente “ao bom povo brasileiro”. É que, desde o confisco do Plano Collor, as autoridades acham que podem currar impunemente a população, se julgarem necessário. Premidos pela crise, os governantes tiraram a máscara da cordialidade e esqueceram rapidamente a afetação dos modos civilizados que tão bem caracteriza a era tucana. Despolitizando a questão e desresponsabilizando as autoridades, o Planalto quer que o Estado não tenha dever algum, ao mesmo tempo em que pretende reduzir os direitos dos cidadãos a um mero direito de consumir uma determinada quantidade de quilowatts e ainda reage indignado quando as associações de defesa do consumidor protestam, quando o Judiciário procura fazer valer a lei e concede liminares ou quando o governador de Minas Gerais declara que acata a decisão do Supremo Tribunal Federal quanto à sobretaxa e aos cortes. O presidente não quer apenas que a gente obedeça: quer que a gente obedeça quieto. É aqui que devemos perceber com clareza o contraste entre a conduta do governo e o comportamento da sociedade. Irritadas com o que está acontecendo e repelindo as ameaças, muitas pessoas têm acreditado que a população está cedendo e obedecendo feito um rebanho de carneiros. Minha impressão, entretanto, é diferente: uma coisa é obedecer e colaborar com o governo; outra é buscar a solução de seus próprios problemas. Com efeito, a distinção merece ser feita porque parece que a sociedade civil está descobrindo que tem de se virar por conta própria.
Confiança perdida
Mais ainda: sentindo ou intuindo que a irresponsabilidade campeia na esfera governamental, a sociedade perdeu a confiança nos governantes e parece se dar conta de que precisa se proteger contra o Estado que governa contra ela – daí a espontânea antecipação da economia de energia, daí a ordem que pontua as iniciativas populares de contenção e o sentido civil, este sim quase cívico, que começa a adquirir o racionamento. É preciso distinguir obediência de autoproteção e auto-organização. Nesse sentido, é bom não esquecer: foram as donas-de-casa de Minas Gerais que moveram uma ação judicial contra a sobretaxa, cuja liminar permite agora que Itamar Franco confronte o governo federal. É claro que Fernando Henrique e companhia tentam traduzir a autoproteção e auto-organização da sociedade em colaboração servil. Afinal, se há algo que eles aprenderam a fazer com o neoliberalismo foi adotar o marketing como política. Assim, azeitado e esperto, o esquema de comunicação do Planalto montou rapidamente o espetáculo da colaboração, que a mídia brasileira ressoa com a sua conhecida diligência. Mas o resultado é patético e talvez seja a longo prazo até mesmo contraproducente para os tucanos, porque se baseia na delação fascista de quem não poupa e, principalmente, no glamour do atraso. Ora, justamente o governo que ia nos levar para o Primeiro Mundo pós-industrial agora se vê obrigado a anunciar a maravilha que é voltar para antes da Revolução Industrial, para o romantismo da luz de velas, dos lampiões, do ferro de passar a brasa, em suma, da mais rudimentar tecnologia…
Absurdo palatável
As sofisticadas estratégias de marketing começam então a ser utilizadas para tornarem o absurdo mais palatável e menos deprimente e para venderem a idéia de que ele é provisório, circunstancial. Entretanto é difícil acreditar que tal recurso funcione quando a sociedade desperta para a farsa da modernização tucana que se explicita e que, mais dia, menos dia, tinha de aparecer. Pessoalmente, achei que a hora da verdade chegara em janeiro de 99, com o estouro do real e a enorme conta que estava sendo apresentada para a sociedade pagar. Mas a crise cambial se revelou “abstrata” e remota demais para a população.
Agora a sociedade acorda e conhece a desilusão. E, quando abre os olhos, vê o “downgrade” que foi sendo construído ao longo de toda a década de 90, o resultado do contínuo e obstinado desmanche das instituições, o efeito da ausência de política como política. A crise ilumina o fosso que aumenta entre o Brasil e as sociedades avançadas, aproximando o país da agonia da Argentina, que já não há como camuflar.
Uma coisa, porém, é certa: não se trata de regressão a um estágio anterior da sociedade brasileira. A situação é inédita e deve ser percebida como tal -a construção da ruína é um fenômeno contemporâneo que corrói o nosso futuro. Acostumando a visão à penumbra, resta-nos encontrar os meios de transformar a raiva e a revolta que a desilusão suscitou em ação; vale dizer: em formas novas de desobediência civil.